Olho para minha estante, na sala. Do alto, duas grotescas faces me contemplam, com seus grandes olhos e as ferozes bocas, agudos dentes à mostra. As cores são vivas, mas formam um conjunto harmonioso.
São duas cabeças em tamanho natural, máscaras tailandesas, da dança Khon. Que conta sobre o mítico drama Ramayana, ou Ramakyan, a luta de Rama, na sua reencarnação como Shiva, contra as forças do mal.
Quem as fez fui eu, num exercício de ceramista amador. Não só fiz as duas, como pretendo fazer outra, formando um trio. Fiz por achar bonitas, raras por aqui, embora tradicionais no ex- reino do Sião, tão distante. Será por isto, mesmo? Por que recorrer a um folclore assim longínquo, sem nada a ver com os tradições brasileiras? Terei perdido enfim a cabeça, para espelhá-la nas destas máscaras?
Mas, não terão nada mesmo a ver, apenas uma caprichosa fantasia? Eu discordo, pois minha relação com essas faces ferozes é antiga. E tem muita, mesmo, com a São Paulo de décadas atrás. Quando existia um belo cine chamado Santa Cecília, na Av. Olimpio da Silveira.
Estamos agora no final da década de 50. Casualmente quase, numa tarde de sábado, adentro o Santa Cecília, sem dar-lhe seu devido valor de -literalmente- templo do cinema. Estou acostumado a frequentá-lo, mas mesmo assim, mais uma vez chamam-me a atenção a mesa central com patas de elefante e as poltronas, com descansa braços elefantinos…
Lá dentro, a verdadeira e antiga influência das minhas futuras máscaras bravias: guardiões tailandeses cercam a platéia, com suas faces de demônios e olhos luminosos, que se apagam gradativamente quando se inicia a projeção. Isto me impressionou fortemente, mas com o tempo perdi a noção da verdadeira imponência e riqueza da ornamentação do cine.
Recuperei-a, deslumbrado, alguns dias atrás. Meu caro Fabio Santoro, cinéfilo inveterado, enviou-me páginas de A Revista, edição de 1999. Nelas, um belíssimo texto de Roberto Bicelli sobre duas glórias da velha Praça Marechal: o Circo Piolim… E o Cine Santa Cecília.
E, enfim, as fotos! Maravilha! Emocionado, revi, pela primeira vez em cinquenta anos, os suntuosos salões e platéia de meu cine favorito. Numa exuberância oriental fantástica, um sonho das mil e uma noites, o velho "Santa" voltava à vida. E que vida!
Sobre a platéia, uma abóbada celestial. Estrelas a luzir, como uma noite alucinada de Van Gogh nos domínios dos marajás moguls, ou no antigo Reino do Sião, que hospedou, num caso verdadeiro, a professora inglesa Ana.
Tudo muito além do que jamais poderia supor nossa vã imaginação, ou nossas pobres lembranças. Agora, sim, sentimos – que perda absurda, a estúpida destruição do esplendoroso cine, pecado destes que jamais poderão ter perdão.
Então, só mesmo chorando… ou fazendo máscaras exóticas de uma cultura estranha, uma humilde, mas sincera homenagem póstuma ao grande Santa Cecilia.
E-mail: [email protected]