O Bugigangueiro

Estas linhas que abaixo narro em forma de história são fragmentos de minha memória de um tempo que longe se vai. Fim dos anos 50 e início dos anos 60, lá no bairro do Jardim Penha, zona leste de São Paulo, onde passei parte de minha infância.

O BUGIGANGUEIRO

Vinha lá de longe, de trás daquelas montanhas azuladas, que eu nem mesmo sei onde era. Só sei que era longe demais.

Vinha ele e sua carriola…, carriola lotada de bugigangas. Tinha de tudo lá dentro… Sapatos? Tinha… Bacias coloridas? Tinha… Tinha bolas, carrinhos de plásticos, panelas de alumínio e de ferro, canecas de lata e de barro, panos bordados, vestido para mulheres e roupinhas de crianças…, penico, então, tinha de todas as cores e tamanhos. No começo da rua soprava bem forte um apito… Era a senha.

A mulherada e a molecada corriam para a rua.

Em um minuto estava feita a roda em volta da carriola. E lógico que a maioria era a mulherada. Todas curiosas e ávidas pelas novidades.

– Seu Alaor, quanto custa isto??? Seu Alaor, quanto custa aquilo???
– Seu Alaor, posso pagar o mês que vem???
– Seu Alaor, será que esta calça serve para o meu sobrinho? E aquela bacia, será que não está furada?
– Seu Alaor, o senhor não tem um penico xadrez? É para combinar com a cor dos tacos do quarto da minha sogra.

Era a maior zoeira, o homem não sabia para que lado olhar nem a quem responder. A mercadoria girava de mão em mão.

Embaixo da carriola ficava deitado o Fiel, seu companheiro de subidas e descidas, de sol e de chuva no frio e no calor. Fiel era um cachorro grande, de pelagem crespa e cor amarronzada… Grande amigo de seu Alaor. Seu focinho era fino e parecia que estava sempre sorrindo… como que querendo agradar a freguesia. Contava sempre seu Alaor que Fiel, certa vez, tinha sido atropelado por um trem com mais de quinze vagões de cimento. Quando o trem acabou de passar, o Fiel levantou-se entre os dormentes da estrada de ferro, sacudiu a cabeça, caminhou até uma moita de barba de bode e deu uma grande mijada… Depois, sentou-se em cima do próprio rabo, como costuma fazer a maioria dos cachorros, e ficou lá se coçando por quase cinco minutos. Em seguida saiu caminhando como se nada tivesse acontecido… Êta cachorrinho valente.

Enquanto isso a freguesia não parava.

Dona Marcemina, uma assídua freguesa, com as mãos cheias de tralha gritava: – Seu Alaor, o senhor marca para mim estas blusinhas, estas camisetas, este carrinho de corda e aquela bacia de alumínio grande… Ao mesmo tempo gritava dona Rosalva, uma senhora gordona que tinha um marido tão magro que diziam na rua que seu pijama tinha uma só lista… – Seu Alaor, marca para mim esta cortina, esta panela e aquela lata vermelha… O homem com um caderno amarelo numa mão e um lápis preto na outra ia só anotando. Tanto para dona Marcemina, tanto pra dona Rosalva, tanto para dona Lourdes… (dinheiro que era bom mesmo muito pouco).

– E então, dona Gertrudes? Da senhora o que é?
– Eu??? Eu não vou levar nada hoje não… estou só olhando… vê lá, hein, seu Alaor, não vai marcar nada no meu nome, vê lá, hein, seu Alaor.

Seu Alaor sorria…

– Que é isso, dona Gertrudes, o que é meu é meu… o que não é não é.

Enquanto isto a freguesia ia se espalhando. Uma para cá, outra para lá, outras ficavam na beira da rua conversando, outras ainda continuavam a revirar a carriola olhando tudo, tirando tudo de um lugar e colocando em outro sem saber o que estavam procurando… Depois diziam…

– Tá bom, seu Alaor. Por hoje eu não quero nada, o mês que vem eu compro.

Era assim mesmo. Seu Alaor já estava acostumado. Levava esta mesma vida já há muitos anos.

Quando por fim se viu sozinho na rua, fez o de sempre… Deu uma ajeitada na mercadoria, uma endireitada no chapéu, uma cuspida nas mãos e ia saindo. Atrás dele o Fiel, língua de fora, respiração forte, passo firme atrás do dono. Só se ouvia o barulho das rodas da carriola, rangendo, levantando poeira da terra seca… E lá se iam… andando pela rua comprida de terra vermelha, seu Alaor empurrando a carriola colorida, debaixo do sol quente, Fiel balançando o rabo, ora mais à frente, ora mais atrás. Viravam a esquina e sumiam… De longe e ouvia o apito.

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