O amigo do italiano Pinuccio

O pai de Pinuccio, apelido de Gentile Giuseppe, faleceu em 1945, na guerra. Morou alguns anos na Eritréia, na África. Depois do falecimento do pai, retornou para a Itália com a mãe e dois irmãos, avós, tios e primos. 
 
Era um sonhador, desejava mudar de vida, tinha apenas 23 anos de idade. Em uma das suas caminhadas pela cidade de Grumo Appula, em Bari, observou um cartaz oferecendo oportunidade para trabalhar no Brasil. Necessitavam de profissionais especializados em algumas áreas. Fez a inscrição, no teste obteve aprovação como primeiro colocado. Herdou a profissão de seu avô paterno, que além de toda habilidade com móveis, também foi um renomado profissional na arte de entalhar, ganhador de prêmios em Paris e outras regiões da Europa.
 
Em poucos dias, o jovem partiu sozinho para o Brasil, no navio Provence, com todas as despesas pagas pelo governo brasileiro. Estava partindo em grande estilo, em seu íntimo desejava vencer, honrar a confiança e a oportunidade recebida. Em condição provisória ficou instalado por alguns dias na casa de um tio paterno. O italiano Pinuccio era orgulhoso e ágil em suas atitudes, rapidamente conseguiu alugar um quarto em uma pensão no Alto da Boa Vista, em Santo Amaro, São Paulo, onde acomodou os seus poucos pertences. 
 
A pensão ficava próxima do local de trabalho. Com poucos meses no Brasil o italiano sentiu uma forte dor no abdômen, era apendicite. Foi encaminhado para o Hospital Matarazzo onde foi operado com urgência. O italiano não tinha ninguém para cuidar dele, ficou na dependência de favores.
 
O mês que ficou em recuperação, sem trabalhar, o fez contrair a primeira dívida no solo brasileiro. Ele ficou muito aborrecido com isso. A dona da pensão era compreensiva, mas sutilmente demonstrava preocupação. O seu orgulho estava comprometido, não admitia dever a ninguém. Sua mãe o ensinou ser digno, jamais ser peso para pessoas, sobretudo nunca ser mau pagador.
 
O enfermo repousou forçadamente por um mês, foram dias difíceis de solidão. Assim que se encontrou em condições físicas de retornar para o trabalho visitou o seu amigo João, um paraibano vigia de um posto de gasolina vizinho à marcenaria. Enquanto os dois tomavam um cafezinho, o italiano contou ao amigo que estava chateado, economizaria até nas refeições para quitar o aluguel da pensão. 
 
Os dois passaram alguns minutos contando suas histórias, tanto de alegrias, quanto de tristezas. Não havia diferença alguma entre eles, ambos eram forasteiros, tentando a vida.
 
O amigo paraibano se compadecendo do problema do italiano, e valendo-se da sua condição de vigia do posto, disse a ele o seguinte:
 
– Amigo Pinuccio, venha dormir aqui no posto de gasolina, ninguém saberá além de nós dois. Você adentra em um dos carros estacionados no posto durante a noite. Desta forma economizará o dinheiro da pensão, em pouco tempo resolverá seu problema. Tem que levantar bem cedo, antes dos proprietários chegarem.
 
– Amigo, eu sou pobre mas sou orgulhoso, honrado, não admito ficar devendo, principalmente para mulher.
 
O paraibano recomendou a ele cautela. Se o dono do posto desconfiasse de algo poderia ser despedido por justa causa, sem direito algum.
 
Pinuccio não recusou a ajuda do amigo. Ficou preocupado porque ele media quase um metro e noventa de altura, para dormir teria que se encolher, mas não tinha escolha. Imediatamente foi até a pensão, solicitou que guardassem seus pertences, afirmou que brevemente retornaria para quitar a dívida. A dona da pensão ficou pensativa, garantiu que seus pertences ficariam aos seus cuidados, que os devolveria assim que retornasse.
 
Dali em diante o italiano pernoitou em diversos tipos de carros da época. Pelo período de dois meses dormiu em Landau, Galaxie, Cadilac, Dodge Dart e Mercury. Ficava meio apertado, ainda assim tinha o descanso merecido da noite. Eram carros enormes, como se diz popularmente “umas banheiras”. Os carros ficavam estacionados no posto porque eram muito grandes e alguns proprietários não possuíam garagem adequada. Tudo estava transcorrendo normalmente.
 
Numa das noites, o italiano escolheu dormir em um Landau. Estava super perfumado e aconchegante. Dormiu o sono dos deuses, uma delícia. Resultado: dormiu além da conta. De repente escutou um ruído estranho, imaginou estar sonhando, a porta do carro foi aberta e ele se deparou com uma moça linda, bem alta. Coitada, ela tomou aquele susto, ele idem. Ela deu um gritinho com um sotaque de estrangeiro:
 
– Quem é você? Que faz aqui?
 
Que sufoco. Um mal súbito tomou conta do italiano Pinuccio naqueles eternos segundos inusitados. Ela o viu ali encolhido, um homem daquele tamanho. O dorminhoco atrasado teve que contar a verdadeira história, sentiu muito constrangimento, humilhação.
 
Para sua alegria e surpresa, a dona do carro foi compreensiva, demonstrou ser uma pessoa do bem, apresentou-se como holandesa, de Amsterdam. Disse ao italiano que ele poderia continuar dormindo no carro até o momento que precisasse.
 
Depois de alguns dias, o italiano conseguiu angariar o necessário para pagar sua dívida, demonstrar para a dona da pensão que ele era um verdadeiro “uomo de parole”. A partir de então trocou aqueles belíssimos carros por uma cama de mola.
 
Este fato aconteceu há meio século. O italiano e o paraibano tiveram contato por um bom tempo, mas depois o paraibano mudou para o Jardim São Luiz, mudou de emprego. Com o decorrer do tempo perderam o contato, coisas da vida.
 
No posto de gasolina o italiano conheceu diversas pessoas importantes da época, tais como o jogador Rivelino, o político Marin e outros. Todos eles se tornaram clientes da marcenaria, bons clientes.
 
Ficaram as lembranças, a constatação que existe gente boa disposta a arriscar-se para ajudar alguém. O paraibano João jamais será esquecido.O italiano continua com os seus valores éticos, seus brios morando no Brasil.
 
Homenagem a Gentile Giuseppe (07.03.1934). 
 
João é um nome fictício. Giuseppe se lembra do amigo, seu semblante, mas esqueceu o nome, e agradece por toda ajuda.