No tempo das marmitas

Quem um dia, na hora do almoço, depois do primeiro período de trabalho, fosse nas indústrias, fábricas, comércio, etc. não esquentou a velha companheira do horário do meio-dia, a inseparável marmita. Pois é. Lá estava ela. Solidária, amiga inseparável e, muitas vezes, cheia de surpresas. Meio-dia. O apito da fábrica anuncia o sagrado horário do almoço e, lá vamos nós para o refeitório, nos acomodarmos nas mesas coletivas para nos abastecer, já que a manhã foi um tanto quanto puxada e a fome já se anunciava desde muito antes.

No “bandeijão” de banho-maria, várias delas aqueciam-se no borbulhar da água quase em ebulição. Eram marmitas redondas, retangulares, umas fininhas e outras mais robustas. Em ágata ou alumínio, outras múltiplas, aquelas que vinham com uma alça e comportavam de tres a quatro unidades, próprias para os mais comilões. Também as térmicas, que dispensavam o pré-aquecimento, mantendo a temperatura dos alimentos em condições de consumo por várias horas, mas era necessário prepará-las pela manhã que só aqueles que morassem mais próximos de seu trabalho podiam dispor, já que acordar às 4h da matina para preparar a comida seria uma “barra”.

Tinham também algumas “estranhas”. Não eram marmitas, mas sim panelas, com tampa e tudo, com fita adesiva para que a tal tampa não se soltasse e oferecesse dificuldade para algum curioso. Algumas delas, marcadas com as iniciais de seus proprietários ou seus apelidos, para que não sofressem nenhum tipo de engano ou “desvio” de estômago, lá estavam elas. Todas juntas e reunidas, aquecendo-se para o mais sagrado dos momentos, a hora do almoço.

Minha marmita também por lá estava e, sempre uma surpresa, pois esquecia-me do “cardápio” do dia anterior, surpreendia-me com o seu conteúdo. Sim, pois, invariavelmente, o cardápio consistia quase sempre no “SDO”, ou seja “sobras de ontem”. Chegavam as marmitas, perfeitamente acondicionadas em bolsas, pastas, pacotes que mais pareciam uma roda de queijo ou rapadura, tudo para disfarçar o seu transporte, mas sempre descoberto pois, não se podia virá-las ou emborcá-las, senão a “melera” tava feita.

Quantas vezes, depois de retirada da geladeira pela manhã e, talvez por uma ação térmica mal formada, o choque de temperatura fizesse com que todo o seu conteúdo se estragasse pelo azedume. Aí, a coisa ficava braba e o odor insuportável. E o jeito era sair e comer uns quitutes na primeira birosca, caso não houvesse dinheiro suficiente nos bolsos para uma refeição digna, digamos, um “PF”.

Não havendo este contratempo, ainda deparávamos com um “criminoso” de refeitório, o sinistro e desconhecido “assaltante de marmitas”. Era aquela pessoa que se adiantava antes do horário do almoço e examinava qual marmita trazia a “mistura” mais apetitosa e a surrupiava, deixando o pobre do faminto proprietário a ver navios, somente com o arroz e feijão, pois que a carne, o ovo e as batatas (se houvesse), estes seriam de imediato “sequestrados” para boca e estômago não sabido e desconhecido e você que se virasse.

Havia também os mais atrevidos que “roubavam” a marmita inteira e deixavam outra com uma “gororoba” intragável para no dia seguinte e, como em um passe de mágica, voltar recheada de uma “gororoba” pior do que a do dia anterior. Era uma cara de pau sem limites e o pior é que quase nunca descobríamos o “facínora”.

Arroz, feijão, carne moída, ovos fritos (ou cozidos), batatas cozidas ou fritas (que ficam parecendo taliscas de madeira mole de um dia para o outro), alguns legumes, macarrão (este é um perigo pela possibilidade de azedar e, sempre azeda), fígado (que sempre “esverdeia” dando um ar de “hematoma”). As salsichas também foram um complemento heróico em quase todas elas e as verduras como a couve e o repolho sempre se destacavam. O problema só se apresentaria de duas a três horas depois com alguns “distúrbios” digestivos que causavam os indesejáveis “gases flatulosos”, acompanhados de odores nem sempre respiráveis e sempre promovido por um “flatulador silencioso”, cínico desrespeitador dos ambientes confinados e do direito de livre respirar de seus colegas de trabalho.

Marmitas e cardápios à parte e, ao fim de cada jornada, lá iam elas, as marmitas, de volta para casa, depois de cumprirem o seu papel de heróicas abastecedoras dos estômagos roncadores do horário do meio-dia, para retornarem no dia seguinte, abastecidas, muitas vezes de incógnitas surpresas. Ainda encontramos muitas marmitas e “marmiteiros” por aí, apesar dos modernos restaurantes “self-service” e da nova legislação trabalhista que obriga as empresas a manter refeitórios próprios para seus funcionários, com a finalidade de eliminar os males digestivos, oferecendo uma alimentação fresca e saudável.

Mas, marmita será sempre marmita, para as horas mais necessárias e sempre será referência de humildade e coleguismo. Quantos de nós, aqueles que já foram “marmiteiros”, não dividiu o “rango” com um colega mais desafortunado de “mistura” ou quantos romances tiveram início no compartilhamento de uma marmita. Aquele que não foi marmiteiro que se apresente agora e tenha a coragem de contestar esta crônica ou se cale e se debulhe em lágrimas por não ter tido a oportunidade de saborear o sabor do lirismo e do romantismo de ter sido um “marmiteiro”.

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