Minha primeira garoa na terra da garoa

Eu não me lembro qual era o dia, mas lembro que o mês era maio e o ano era 1976. Eu tinha seis anos e só, então, fui oficialmente apresentada à terra que me viu nascer.

Nasci em São Paulo. Tudo estava programado para que eu chegasse ao mundo no dia 17 de janeiro, quando minha família já estaria em Porto Alegre. Mas eu, inquieta como sempre, resolvi chegar mais cedo. E às 09h e 05 minutos do dia 20 de dezembro, fiz minha "estreia" no Hospital Santa Helena no bairro da Liberdade.

Desde então, todos ficaram convencidos que seria uma mulher de sorte. Minhas duas irmãs mais velhas nasceram na Maternidade Leonor Mendes de Barros, uma Maternidade pública da Zona Leste de São Paulo., quando nasci meu pai trabalhava na Companhia Antartica e o Santa Helena era da Fundação.

Tive algumas "mordomias" pouco comuns a prematuros naquela época. Mamãe pode desfrutar de um apartamento privativo. E como nasci justamente nessa data, tive o privilégio de ir de táxi do Hospital até a Rua Apucarana no Tatuapé onde morávamos. Afinal, papai guardou um pouquinho do abono de fim de ano para o meu "glamouroso" transporte.

Com 40 dias, mudamos para Porto Alegre onde moramos por quatro anos. Depois, foram mais dois anos em Goiânia. Meu pai, após uma séria crise financeira, resolveu voltar a São Paulo. Lembro-me que ele comprou apenas duas passagens num ônibus convencional. Eu fui deitada no colo dos meus pais durante todo o percurso. Dormimos muito mal durante a viagem. Consegui pegar no sono quando já estávamos chegando. Lembro que ouvi minha mãe falar pro meu pai: “Chegamos à cidade grande, seu moço!”. Carinhosamente, ela me disse: “Chegamos na sua terrinha”.

Quando olhei pela janela, me assustei com o tamanho daquela cidade. A Rodoviária ainda funcionava próxima à Estação da Luz e tinha um teto todo colorido. Naquela cidade cinza, visualizei as primeiras cores. Abracei minha bonequinha e senti um medo enorme. Uma sensação que jamais me esquecerei. Segurei na mão da minha mãe com força, tive medo de me perder. De nunca mais ser encontrada.

Desci do ônibus para esperar as malas serem retiradas do bagageiro. Na época, o desembarque não era feito nas plataformas; descíamos em plena calçada. Chovia uma chuva muito fina e fria.

Disse pra minha mãe: "Olha mãe, que chuva pequenininha". Ela me disse: "Filha, essa chuva pequenininha chama-se garoa".

Olhei aquele céu cinza-escuro de início de noite. Deixei a garoa cair no meu rosto e finalmente batizar aquele rostinho redondo. Nunca esqueci do meu primeiro amor, e jamais esquecerei da minha primeira garoa.

Seguimos para um hotel meio suspeito. Mas era o único que dava pra pagar: o Hotel Estoril. Até hoje não sei onde fica esse hotel.

Mas me lembro que naquela noite, senti muito frio. Deram-nos uns cobertores fininhos, tomei uma xícara de chocolate quente e dormi uma noite inquieta agarrada aos meus pais.

No outro dia, a garoa continuava. Fomos rumo ao Sumaré na Rua Nova York, onde morava um primo do meu pai. Hospedamos-nos lá por 30 dias, quando finalmente conseguimos alugar um apartamento no Belém.

As garoas continuavam constantes. Mas já não me assustavam. Adorava ver a garoa pingando na janela do meu quarto. Depois, aprendi que esse clima também era bom pra namorar. Depois percebi que bons vinhos ficavam mais saborosos nesse clima. E depois de tantas garoas, percebi que a mulher de sorte não nasceu no Santa Helena. Nasceu naquela noite de garoa na antiga Rodoviária.

A garoa daquela noite me deu coragem pra enfrentar de cabeça erguida todas as tempestades que já tive que enfrentar nessa vida. E eu não tenho medo. Estou pronta pro que der e vier.

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