Meu saudoso Bexiga/Bixiga
Quem te viu, que te vê-Parte II
Reminiscência em gotas
Vamos lá, vamos lá, memória. Ah! Como se fosse hoje (tinha uns dezesseis anos ou pouco mais). Descendo a Rua Major Diogo vinha lentamente um dos maiores barítonos que conheci. Chamava Raphael Passalaqua, parente do monsenhor Passalaqua (nome de uma das ruas do Bexiga). Morava numa bonita e enorme casa. Vivia só com uma governante de nome Nair. Dava grandes festas. Gostava de um bom vinho (até demais). Frequentava o famoso Ponto Chic, onde cantava até altas horas. Voltava pela manhã e sempre alguém o ajudava a entrar. Nunca conseguia colocar a chave na fechadura. Era italiano e diziam que largou o curso de medicina na Itália e veio para o Brasil por causa de um amor frustrado. Diziam também que a boemia era o alimento desse amor perdido. Ficou doente e mudou-se. Nunca mais se teve notícias dele. O mais importante e que ficou para sempre foi sua maravilhosa voz; os trechos de óperas tão bem cantadas e o eterno sorriso bonachão que sempre o acompanhou.
Quem morou no Bexiga há de lembrar-se, na Rua Major Diogo, da famosa fábrica de calçados Schattamachia. Era enorme e empregava uns cem números de pessoas. Sem dúvidas os melhores calçados de São Paulo. Bem em frente, muitos anos depois, foi construído o Teatro Brasileiro de Comédia, que ainda funciona até hoje naquele local. Em uma época em que trabalhava na ladeira da Esplanada, no centro, a caminho do trabalho passava no bar perto do teatro para tomar café e comprar cigarros e lá, quase sempre, encontrava um rapaz, magro, humilde, tímido tomando seu café com leite. Este rapaz que então iniciava sua vida profissional no teatro era nada mais nada menos que o famoso Francisco Cuoco. "Batíamos" um papo rápido e eu seguia meu caminho.
Nesta mesma época, na "minha" rua, na altura do no. 800 morava também uma pessoa importante nas lides esportivas. Falo do Carlos Carsughi, comentarista de futebol da Rádio Panamericana. Tinha uma bela careca já naquele tempo.
Subindo mais um pouco, na esquina da Brigadeiro Luiz Antonio instalou-se a famosa Padaria e Confeitaria Italdoce. Doces e pães divinos. O mais gostoso e disputado era a famosa "esfolhatela", um folhado de ricota fresca. Sem falar no pão de linguiça calabresa.
Na Brigadeiro, do lado do Cine Monark, havia uma padaria-bar onde nos reuníamos com os amigos. Nela também frequentava, saindo do teatro no prédio da Federação Paulista de Futebol, para saborear as pizzas vendidas a pedaços, nada mais do que a famosa Regina Duarte e outros artistas que lá frequentavam.
Lembro-me (com saudades) do bar e sinuca do "Zé mataro", onde aos domingos grandes disputas de bilhar eram realizadas. A simpática filha do Zé servia a "cerva", o provolone e a calabresa em porções fartas. Depois era só passar na farmácia (se necessário) da Cathedral tomar sal de frutas e bater um papo com o proprietário, um senhor simpático, baixinho e usava um óculos quase maior que seu rosto, o que chamava atenção de modo caricato a criançada da rua.
Recordações tristes também nos vêm à mente. Lembro-me que indo para o Colégio Santo Alberto, onde fazia o curso ginasial, na esquina da Rua Humaitá com a Brigadeiro Luiz Antonio, um senhor bastante conhecido e morador na Rua Major Diogo, ao cruzar a avenida, foi atropelado por um bonde e veio a falecer no local. Não adiantou o condutor ter baixado a "grade" na frente do bonde. Lembro que o bonde, na época, moderno, levava o no. 1719, linha avenida. Nunca tive notícias que um bonde atropelou e matou uma pessoa.
O bonde linha "avenida" subia a Brigadeiro e entrava na Avenida Paulista e depois a Consolação. Essa linha era a linha escola. Explico-me: linha escola porque nela os aprendizes de "batedor" de carteiras treinavam orientados por um verdadeiro professor: o batedor chefe. Era verdadeiramente uma arte. Não matavam, não machucavam, não usavam drogas. Levavam sua carteira sem você perceber. Hoje existe isso? Não. Era um a arte que não ofendia física nem psicologicamente uma pessoa.
"Esse meu bairro é um "barato". Nesta mesma época, na mesma Rua Major Diogo, existia uma alfaiataria famosa. O alfaiate chamava-se Valmir e era muito requisitado. Até aí tudo bem. Nada de mais. Entretanto, ela tinha um entregador de roupas, um funcionário faz tudo. Sempre alegre, comunicativo, trabalhava sempre cantando. Pois bem, o rapazinho em questão tornou-se um famoso cantor. Tive o prazer de em determinado tempo conviver com ele. Seu nome: Agostinho dos Santos.
Nunca vou me esquecer de um fato deveras curioso. Algumas casas após a minha morava uma moça muito bonita. Essa moça namorou e casou. O casal passou a morar na mesma casa. Até aí nada demais se não fosse o ciúme que entrou na vida do marido. Sabem o que ele fez? O doidão pintou todas as janelas (na época de vidros transparentes) de branco fosco para que ninguém pudesse ver sua mulher. Tinha ciúmes de todos. Era só olhar para sua mulher e ele partia para briga. Sabem o que aconteceu? Um belo dia arrumou sua mala e fugiu. Nunca mais se teve notícias dela. Seu nome Laura ou como a chamavam: a bela Laura.
Ah! ia esquecendo de um fato tragicômico. Na casa ao lado da minha, cujo dono na época era o Sr. Alberto Nepomuceno, morava de aluguel uma família composta de mãe, filha e dois filhos. Eram muito educados. Um dos filhos, um mulato enorme, educadíssimo e bastante amável, sempre solicito e que naquela casa viveu por alguns anos, era na verdade um dos maiores ladrões da capital de São Paulo. Nunca, em tempo algum, alguém desconfiou dele. Ficamos sabendo pelos jornais que, ao tentar roubar uma casa, foi descoberto, e ato contínuo baleou o dono da casa. Preso, foi para a cadeia. Ele escondia o produto do roubo no forro de sua casa, sempre de madrugada sem fazer qualquer barulho. O que fica? O que parece ouro nem sempre o é.
Mas nem tudo é trágico. Na rua tinha um açougue que servia praticamente boa parte do bairro. O proprietário, um simpático sujeito, mas um pouco irreverente, chamava-se Nino. Um de seus filhos (não recordo do nome), o mais brincalhão, o mais alegre dentre eles, comprou uma peruca. Era calvo, apesar da pouca idade. Esclarecemos que as perucas começaram a surgir naquela época. Brincalhão como sempre, colocou uma peruca e foi no açougue de seu pai e comprou 1 quilo de carne. É de espantar o que aconteceu. Vejamos: não só seu pai não o reconheceu como também lhe roubou no peso da carne vendida. Não é para rir?
Outro fato pitoresco e incomum aconteceu quando frequentava o Cine Espéria aos domingos. Tinha meus 11 anos de idade. Era época da Semana Santa. Estava passando o filme A Vida de Jesus. Toda a garotada lotava o cinema. No decorrer do filme, mais precisamente quando Judas trai Jesus por trinta moedas, eis que aconteceu o fato inusitado: do balcão do cinema, alguém com muita raiva vendo a traição atirou um sapato na tela e gritou TRAIDORRRRRRRR. Não é algo bastante cômico e inusitado? Na verdade, lembro agora que o grito foi TRAIDOR DESGRAÇAAAAAAAADO!
Estas verdadeiras gotas de pensamentos são como as gotas de orvalho que dia após dia nos indicam que nova vida esta começando. Assim é o pensamento. Ele é o testemunho da vida.
Vão lembranças e volte para os meus dezesseis anos.
Na Rua Humaitá, esquina com a Conselheiro Carrão, tinha uma casa cuja entrada ficava na Rua Conselheiro Carrão e sua janela dava para a Rua Humaitá. Um ângulo de 45 graus. Era uma casa "suspeita", como diziam na época. Na verdade uma casa de tolerância, conforme explicação dos homens mais velhos. Deixamos de conversa e vamos logo para os fatos.
Estava eu e um amigo conversando perto da referida casa, numa tarde ensolarada, quando eis que pela sua janela voa uma capa de chuva, uma maleta tipo 007 (de hoje), um paletó, e o que nos deixou atônitos foi ver, logo a seguir, também, um homem "voar". Ele levantou-se, pegou o paletó e a pasta, e saiu correndo pela Rua Humaitá rumo à Avenida Brigadeiro Luiz Antonio. Ato contínuo, eis que sai pela porta da casa uma mulher correndo atrás do homem e gritando "desgraçado", sem vergonha. Se ela conseguiu pegá-lo não sei. O que aconteceu realmente naquela casa não sabemos. Só podemos levar a imaginação a conjeturar, a navegar por suposições.
Eu e meu amigo rimos a não poder mais. Quando contamos aos outros colegas ninguém acreditou. Homem voando?!!!!!! Essa não. Juramos, mas mesmo assim não acreditaram. Cá entre nós, foi verdade sim. Vamos pegar estrada nova. Para tal entramos na "máquina do tempo". Apertamos um botão e eis que recuamos no tempo. Saio da máquina. Estou com + ou – 12 anos.
Muito bem, já me referi as várias pessoas importantes e famosas nessa história. Entretanto, desta que vou falar, e como a conheci, dificilmente saberão.
Falo do inesquecível Adoniran Barbosa, para os amigos o Barbosinha. O famoso compositor do Trem das Onze.
Eu fui seu jogador de futebol. Ele era técnico e dirigente do clube. Não fiquem espantados, não. É isso mesmo: técnico e dirigente. Aposto que poucos sabem do fato.
Jogávamos aos domingos pela manhã num campo situado no atual Parque Dom Pedro, no centro da capital. Tínhamos um bom time. Eu jogava como meia direita. Não era um Waldemar Fiume (craque do Palmeiras na época), mas quebrava o "galho".
Acredito que estão se perguntando que time era esse, como foi formado, quem o fundou, onde sua sede era localizada?
Vamos lá sem mais demora. Os dados:
CLUBE: BARBOSINHA FUTEBOL CLUBE
– RÁDIO RECORD S.P.
FUNDADOR: ADONIRAN BARBOSA
SEDE: RÁDIO RECORD (entre a Rua José Bonifácio e Rua Direita)
Minha carteira de sócio consta:
Nome. Fabio Belviso
Idade: 12 anos e os dizeres: foi matriculado como sócio deste club, sob o n. 136.
Em 22 de julho de 1946
Assinado: Vice-presidente
MURILLO LEITE
-Rádio Record
Amigos, aqui me retiro. Vou "bater" uma bola e após ver meu Palmeiras jogar. Chau.
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