Memorial do Imigrante II

Continuo afirmando apaixonadamente que o Memorial do Imigrante, antiga Hospedaria dos Imigrantes, no Brás, é um dos locais mais especiais de São Paulo. Especial pelo significado histórico de transformação da economia e da sociedade brasileira, pela riqueza nos detalhes, pela beleza da arquitetura, pela amplidão dos jardins, pelo cuidado e zelo pela documentação armazenada, pela organização do espaço, mas, sobretudo, pela sensibilidade que as paredes, caladamente, guardam. Respira-se ali um sentimento de busca de milhares de pessoas, de várias etnias, uma busca incessante e apaixonada pela vida, junto da saudade da distante pátria e de quase impossível retorno. Respira-se existência e o imenso desejo por deixar a história cravada nos corações das futuras gerações com amor, humildade e honra, muita honra.
Antes de chegarmos ali, já pudemos perceber a garra pela sobrevivência e identidade abraçando fortemente as almas. E foi nas ruas próximas. Era domingo o dia da nossa última visita ao Memorial. Era perto do meio-dia, quando terminava a cerimônia religiosa numa igreja vizinha. O público que saía do culto exibia uma feição humilde, trabalhadora, nordestina, sofrida; exibia aquele olhar de pergunta sobre o dia de amanhã e da necessidade de se saber forte para suportar todas as aflições que uma cidade tão gigantesca oferece. Afinal, São Paulo, além da cultura, da vibração, dos excelentíssimos restaurantes, museus, galerias, teatros, cafés, shows, oferece também amarguras, uma violência sem par, inúmeras interrogações torturantes: às vezes as cores se confundem com a feia fumaça que sobe apagando as estrelas, no dizer de Caetano.
Mas o andar de cima do Memorial oferece brilhantemente a atmosfera do mundo do trabalho de São Paulo antigo. Imagens belíssimas formam painéis imensos nas paredes que, tirando-se uma foto ali, podem fazer qualquer um se sentir em plenos anos 1930 ou 1940. Existe uma pequena barbearia, uma pequena farmácia, o café, tudo com as representações do início do século passado. As prateleiras da farmácia antiga me provocam lembranças da farmácia nos meus tios no interior do Paraná nos anos 1960. Na barbearia o rádio também se exibe ao lado daquela cadeira grande, estofada, tradicional. A “rua” do pátio é de paralelepípedo, com uma carrocinha de frutas e verduras e lá está, infantil, o verdureiro empurrando o seu instrumento de trabalho. Emociona e muito bater foto ao lado daquele menino-homem que também fez muito para que a cidade crescesse. A empatia é imensa.
Por outro lado, é muito inteligente e correta a apresentação em bonecos de pano dos imigrantes em tamanho natural com os seus trajes, cores e fisionomias típicas, uns próximos aos outros, porém sem nenhum sorriso. E, um pouco mais à frente, numa outra sala imensa, a riquíssima apresentação de São Paulo do café, com fotos estarrecedoras de trabalhadores com até cinco sacas de café empilhadas nos ombros. Fotos de fazendas imensas e informações históricas precisas em grandes painéis, sem contar a apresentação das máquinas de moer os grãos, os instrumentos de pesagem, tudo com a mais rigorosa precisão.
E sempre é tempo de homenagearmos esses homens e mulheres que deram o sangue e o suor para a construção de uma nova realidade. Provavelmente colheram poucos frutos do seu trabalho. Fiquei imaginando as dores no corpo de todos aqueles trabalhadores do café. A literatura e a própria história não se debruçaram sobre essas questões tão humanas, tão delicadas e sensíveis. Mas a fisionomia da dor estava ali, sim, presente. Alguns estão arqueados com aquelas sacas nas costas, como que, de alguma forma, carregando o peso do progresso e da prosperidade… Para os outros…
Posso afirmar que o progresso também trouxe dores insuportáveis – as dores do crescimento. Por esse e mais uma centena de motivos, esses trabalhadores de São Paulo, sobretudo os imigrantes, que abandonaram seu chão original, devem estar presentes no nosso imaginário, nas nossas emoções e orações, agarrados ao orgulho de ser paulista. O trabalhador de São Paulo merece um lugar na própria bandeira e na alma de uma cidade-monumento que a todos abriga… Apaixonadamente.

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