Mais Rua Visconde de Parnaiba

Hoje adulto, com muita clareza, viajo muitas vezes por essa rua, construída no tempo, contada pelas histórias dos meus parentes e amigos, sem livros, algumas fotos, lembranças da memória, conversas e alguns documentos pessoais.
Nos dias atuais percebo que minha rua era muito maior do que imaginava e nas reminiscências pode-se caminhar por Nápoles, pelas ruas de Lisboa e pelos sobrados andaluzes nas imagens deixadas dos imigrantes de outrora.
Andando por essa rua da infância vejo que foi aí que me conheci de fato, vesti minha identidade, construí meu verdadeiro território.
Descobri de onde vieram minha alegria e minha amargura, minha inquietude e meu desencanto, minha vontade, meus sonhos e pesadelos. Nessa rua notei: meus olhos e cabelos, sorriso e boca, tez e pele e o meu corpo todo.
Através dessa rua conheci e fui ao encontro de outras ruas que desenham o mapa do Brás e da Mooca, e descobri vilas e ruas perto de onde morei.
A Rua Visconde foi, e ainda é, a maior de todas as ruas, sem limites, de mão única que me leva ao passado, me retorna ao presente, me torna completo e sem sucessor. Permite que eu tenha a tranqüilidade de seguir vivendo e sonhando.
Ainda hoje me deixo levar nas músicas tocadas em meu carro, marcadas no meu passado.
Nessa rua desvendei a mediocridade de alguns donos do poder e do dinheiro, que nos fizeram chorar, e tentaram, mas não conseguiram, nos desprezar, diluir, sucumbir.
Quando sonhando com a rua, evoco todas as imagens que pretendo. Algumas se apresentam no mesmo instante, outras se fazem desejar por mais tempo, mas todas são extraídas dos esconderijos de minhas eternas lembranças.
O Natal, com suas luzes e suas músicas, sempre teve uma influência muito forte em minhas sensações, em meu estado de espírito. Por essa época algo estranho ainda toma meus sentimentos e me deixa nostálgico (talvez as lembranças do conto, que narro no livro, vivido nessa rua), dando-me a sensação de que me falta alguma coisa, falta-me algum lugar.
Mesmo que eu e o tempo fizemos um pacto, ele continua me perseguindo e eu fugindo dele, e por saber que um dia nos encontraremos nos finais dos tempos escrevo os tempos passados nessa rua. Tenho vontade de chorar, o tempo passou e continua passando, e com os olhos cheios de lágrimas disfarço e respiro fundo, e narro as histórias da minha rua como se fosse minha.
Nasci há sessenta e dois atrás, e não há nada na Mooca que eu não saiba um pouco, e alguma coisa que eu não conheça do Brás. Nasci exatamente na divisa que separa e separava, mais ainda, na década de 50/60, o Brás da Mooca, na Rua Visconde de Parnaíba, no início dela, no número 387, até a modernidade esgarçar a avenida Alcântara Machado e o bairro começar a desfigura-se, e o Brás e a Mooca ficarem cada vez mais afastados. A entrada da zona leste era o Brás, depois a Alcântara Machado se tornou a sua linha divisória.
Residindo nesse local, fui um privilegiado, brincava de mãe da rua todas as noites de verão, atravessava a rua feito o saci-pererê, negrinho de uma perna só, e já estava na Mooca, retornava com a mesma perna e estava no Brás novamente. Nessas noites de verão as famílias (imigrantes e filhos de imigrantes na sua maioria) levavam as cadeiras para a calçada e lá ficavam conversando, onde os gestos eram mais marcantes que os sotaques (falavam com as mãos e os movimentos dos braços), e nós crianças correndo e brincando.
Recordo da procissão de San Gennaro, atravessando a rua por completo, em que padres e outros clérigos saiam paramentados, carregando imagens, crucifixos seguidos pelos fiéis, formados em duas ou mais alas, entoando cantos e rezas.
O séqüito detinha-se defronte à Padaria Napolitana, a contribuição da panificadora às exéquias de Jesus era grande.
A Madona (representava a mãe de Jesus; Nossa Senhora) toda de negro, em cima de uma cadeira previamente preparada, retirava o véu do rosto e iniciava expressar-se no contralto. A mulher exibia uma beleza serena de traços suaves e regulares.
A procissão provinha da Paróquia de Gennaro (São Januário), da Rua da Mooca, e não comemorava a liquefação do sangue do santo, e sim a semana santa. Ouvia-se um silêncio ensurdecedor nas ruas. Após a passagem da Verônica, a procissão seguia pelas ruas geladas do bairro fazendo com que o trânsito fosse interrompido causando uma imensa fileira de bondes parados na Rua da Mooca. Passageiros aguardavam a passagem pesarosos e, no mais, com profundo respeito.

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