Nosso sistema nervoso, formado nesses incontáveis séculos de evolução, adquiriu, além de centros vitais, escaninhos onde os acontecimentos do dia a dia ficam registrados. Por uma série de razões possíveis que não interessa citar aqui, de quando em vez uma dessas lembranças vem à tona na nossa consciência e, de acordo com o conteúdo, causa-nos satisfação ou tristeza muito semelhante aquela sentida na época do acontecimento. De qualquer maneira, mas melhor na alegria, essas recordações nos fazem reviver e sem dúvida, têm sua razão de ser, pois muitas vezes servem de molas que nos impulsionam.
É sabido que uma recordação agradável faz com que nosso humor seja exacerbado e com isso nosso desempenho melhora. Qualquer psicólogo ou qualquer um de nós que sempre nos consideramos, lá no fundinho, o melhor psicólogo existente, sabe como sofre e como vive mal uma pessoa incapaz de ter ou de se permitir ter essas recordações agradáveis e vive das recordações desagradáveis. Tornam-se pessoas irritadiças, anti-sociais e passam a não viver e, pior do que isso, fazem com que as pessoas que lhe são próximas ajam do mesmo modo. Quem não teve alguém próximo em alguma circunstância e que era desse tipo?
Sendo assim, do alto (ou do baixo) de minha idade vetusta procuro sempre, mesmo que às vezes isso me pareça irresponsável, conforme a circunstância, ter a mente aberta, desligada em termos, protegendo assim da ferrugem e do mofo meus neurônios restantes; valentes e impolutos guerreiros. Para tanto, quando não estou lendo, escrevendo ou ouvindo música, deixo me levar pelas lembranças obviamente agradáveis. Muitas delas ocorridas na infância! E por que não? Naquela remotíssima época eu era eu mesmo, como agora, só que menor em tamanho e em idade. Talvez fosse mais responsável, mas ninguém é de ferro!
Uma maneira interessante, e eu uso esse artifício às vezes, é recordar a partir de fotografias. Uma delas me traz belas lembranças: a que me mostra no colo de meu pai, em plena Rua Boa Vista, se não me engano, ele com chapéu de palha, a conhecida “pelheta” e minha mãe ao lado, com uma sacola de pano e vestida com um traje estranho, muito longo, chapéu tipo gorro, de renda, colocado de lado e sapatos brancos.
Em outra fotografia que tenho agora em mãos, me traz à lembrança a casa de uma tia situada na Rua Maestro Cardim, no seu imenso jardim e nela reconheço e lembro-me perfeitamente bem de que meus primos e eu aí brincávamos. Vem-me à mente também, mas essa lembrança faço questão de descartar que ao voltarmos para casa não havia nenhuma possibilidade de comparação, pois éramos pessoas de poucas posses, mas isso me lembra também que éramos felizes e que meus pais plantaram em meu cérebro, ainda em formação, as mudas que no futuro permitiram que eu tivesse vida adorável.
Outra série de fotos tiradas (eu ainda guardo) com uma máquina Agfa tipo caixão 6×9 lá no velho e querido Brás, na Rua Alegria. Por meio delas vejo e recordo perfeitamente de meu avô, pai de meu pai que para garantir o pão de cada dia, apesar da idade, passava grande parte do tempo fazendo carteiras de couro para notas.
Interessante que as lembranças, sistematicamente, como que por osmose atraem outras e, daí são montados os velhos acontecimentos quase que em sua íntegra. Sou partidário de que não existe, de fato, a tal de morte, apesar dessa façanha ser produto de nossa própria mente. Recordando, como disse há pouco de meu avô e de meus tios e tias lá no Brás, sinto-os como se estivessem aqui, neste momento, recordando comigo. Essas pessoas estariam mortas exatamente se eu ou alguma outra pessoa não se recordasse mais delas.
Deve ser profundamente triste para alguém ter certeza de que, quando se for, ninguém mais dela se lembrará. Interessante fonte de lembranças é também a associação de imagens ou de ideias. Como sou admirador de ver e ouvir instrumentos de percussão, quando isso acontece me vem à mente minha adolescência e a vontade que tive de participar da banda militar do colégio (naquele tempo era chamado de fanfarra).
Ao entrar no salão onde estavam os instrumentos me deparei com várias cornetas, alguns repiques (cachetas) e alguns surdos (tambores). Mas, talvez por eu ser mais “rechonchudo” fui atraído pelo tal de bumbo, aquele imenso instrumento que se leva à frente do corpo preso por correias. Mais tarde percebi, com muita alegria, que era ele quem dava o ritmo. Lembro-me perfeitamente bem com que garbo meus colegas e eu desfilávamos pelas ruas, sentindo que havia certa atração das pessoas pelo nosso desempenho, principalmente, é óbvio, das garotas.
Algo que vem junto com essas lembranças, mas que consigo afastar da consciência, sem muita insistência, é o fato de que quando havia ensaio, podíamos oficialmente cabular as aulas. E confesse caro leitor, quem na sua época não gostava desse tipo de acontecimento?
Creio ter percebido que bastante associado às lembranças, está algo que muitos criticam, mas tenho certeza de sua importância, que é a fantasia. Em muitas ocasiões importantes de nossas vidas é justamente a fantasia que nos leva para o mundo da satisfação, da realização, da, às vezes, salvação, afastando-nos de tendências perigosas.
Reparem que a pessoa que está na fase da fantasia tem ar de beatitude. Está nesse momento vivendo sua fantasia, demonstrando quanto isso é importante. Ao voltar a si, ou seja, à realidade, muitas vezes o problema que a afligia pode agora ser encarado com tranquilidade, com mais consciência. Isso tudo pode ser considerado como filosofia barata, de mesa de botequim, mas, não é atrativo? Que dizer dos pintores, dos compositores, dos cientistas, enfim dos luminares de nossa civilização, não fosse à fantasia que os guiou para atingir a finalidade proposta de oferecer ao mundo uma obra, uma descoberta, um bem enfim?
Não quero parecer piegas, mas como sou fã incondicional deste site, me permiti tomar a liberdade de remeter estas linhas e tentar compartilhar com possíveis leitores essa minha mania de recordar e de reviver passagens da minha existência. Permitam-me dizer, não a título de conselho, é óbvio, mas que recordar é viver, frase surrada, mas profunda. Creio ser fundamental, muitas vezes submetermo-nos à análise, mas por que não, sendo nós mesmos o terapeuta. Mas não a tal regressão, pois se corre o risco de estacionar em uma daquelas fases menos agradáveis, além de se correr os riscos de reavivar passagens que não devem vir à tona ou de que esqueçamos que estamos ainda por aqui e que temos muita coisa a fazer por nós mesmos e pelos outros.
Citei aqui apenas algumas poucas passagens. Afinal, os leitores têm limite de paciência e eu tenho meu “desconfiometro”. Alegra-me o fato de que pelos poucos anos que me restam, terei a oportunidade, e farei questão disso, de me dedicar a lembranças e a fantasias, e por que não? E vivenciar como em um filme ou em uma peça teatral os belos momentos de vida que o Alto me proporcionou.
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