Lembranças de um domingo qualquer no Bexiga

Domingo de muito sol. Meio dia e meia. D. Maria Capuano, vestida todo de preto, num luto eterno pela morte do marido – a maldita gripe espanhola – me chama da janela:
– Inacinho, fiz dois pratos de macarronada pra você e sua mãe…
Tudo isso dito num sotaque do tipo Juó Bananere, impossível para mim, quase 70 anos depois, reproduzir…
– Obrigado D. Maria… Que Deus ajude… – respondi.

Os domingos no cortiço da Rui Barbosa eram dias especiais: não tinha aula; os pais estavam em casa; as mães tiravam uma folga do lesco-lesco dos tanques multiuso, onde se lavava roupa, louça, rostos, braços, se escovavam os dentes (aqueles que ainda tinham), limpavam-se dentaduras e nós, crianças, em dias muito quentes, tomávamos banho (ou meio banho, sei lá como poderia chamar aquela esfregação de pescoço e tentativas ingentes de perfuração de tímpanos), "lavação de orêia" (como dizia minha mãe, a D. Zezé, em seus momentos de carrasca torturadora)…

D. Lidia, casada de papel passado com o Sr.Vicente Gallo, era filha de D. Maria Galvão, italiana de Vincenza e casada, também de papel passado, com um negão que eu não conheci, porque ele já tinha subido a Consolação de costas havia muito tempo quando mudamos para o cortiço, portanto, viúva eternamente de preto.

Pois bem, D. Lidya, com toda sua mulatice, ao acordar nos domingos, dizia:
– Que dia “bunito”… Hoje vai “fazê sór”!
Ou então falava:
– D. Zezé, é “milhó arrecolhê as ropa qui hoje vai chove”!

E não falhava: ou fazia 'sór' ou chovia, ou não fazia 'sór' nem chovia.
Porém, por via das dúvidas, minha mãe recolhia as roupas do varal e as cascas de laranja que secavam ao sol. Cascas de laranja? É, cascas de laranja! As cascas de laranja quando secas serviam para atiçar o fogo dos fogões à carvão, qualquer bexigolento sabia disso, oras!

Mas, voltando à vaca que estava se congelando pouco e pouco, continuemos a falar dos domingos no aprazível bairro do Bexiga dos anos 40s e 50s…

Na esquina da Fortaleza com a Rui Barbosa, havia dois comércios. No lado ímpar, o armazém do "seu" Marciglio" com todo aquele bric-a-brac da época: bombas de inseticida, vassouras, sabão em pedra, espiriteiras, bacalhau pendurado na porta, sacos de arroz e feijão, sal em saquinhos de pano, gorrinhos com emblemas de time, pirulitos de açúcar queimado, balas paulistinha, bombinhas de São João, papel de seda e muito mais. No lado par, lado direito de quem vem do Morro dos "Ingreis", havia um frege-moscas muito bem frequentado pela elite da malandragem do bairro: Pato n'água, Nego Testa, Tião, Tininho, Dito Bereba, Pé Rachado, Henricão, Liquinho et alii. Era recomendável não olhar para dentro do boteco, "principarmente" quando o "Da Lagoa" estivesse por lá bebendo a sua garapa diferenciada – o "homi" era "anti-sociar", ou seja, ficava muito nervoso a troco de nada e passava a oferecer uma farta distribuição de "rabos-de-arraia, pernadas, aús, bandas-sem-negaça ou grampeando,bordoadas, facadas e tiros". É, o homem era "anti-sociar" mesmo, "pobremas de berço", diria um sociólogo metido à psicólogo ou vice-versa.

Os domingos também eram dias de matinê no Cine Rex ou no Cine Espéria. Filmes com William Boyd, o Hopalong Cassidy, que a gente chamava de opalongue cassidi, Errol Flyn, o Robin Hood (Robin Udi), John Wayne Jon Vâini) e as "fitinséri": O Homem Morcego e Robin (robín), Flash Gordon, Homem Foguete, Durango Kid… Meu Deus, como a gente esperava aquele domingo! O que será que vai acontecer "ca" Nyoka? Será que "aquele monte de leão" vai "matá" ela? Como era complicado ser criança naqueles tempos; pelo menos, naquela época, era o que eu acreditava…

A noite chegando, as mães esquentavam o macarrão do almoço, jantávamos e tomávamos o último “não” do dia:
– Mãe, posso fazer um refresco?
– Que refresco, menino? Refresco do quê?
– Água, vinagre e açúcar, mãe!
– Não! Onde já se viu uma coisa dessas?! "Num" pode! Você acaba fazendo xixi na cama…

Anoiteceu. Os pais colocam as cadeiras nas calçadas, conversam sobre coisas do bairro, sobre política, "futebor". As mamães cochicham, a fofoca come solta… Faz-se silêncio quando o bonde para no ponto e todos observam quem vai descer… A noite se estica um pouco mais e todos vão dormir… Segunda-feira é dia de batente…

E não fiz xixi na cama (patente). Juro!

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