Não.
Não é uma história de terror ou suspense o que vou lhes narrar.
Na verdade, esta é uma sublime história de um encontro.
Um encontro entre dimensões ou espíritos.
*
Igreja de São Gonçalo na Praça João Mendes
É uma igreja pequena, que não chama muita atenção, pois fica atrás da enorme e imponente Catedral, bem no centro de São Paulo.
Era o ano de 1964 e nesta Igreja de São Gonçalo, nos fundos, em um barracão, havia um “clube” que se chamava Associação dos Meninos Católicos (AMC).
Este AMC era administrada pelo “Irmão” Pompeu.
“Irmão” na época seriam talvez os beatos de hoje.
Eram homens que se dedicavam fervorosamente à Igreja.
Vestiam batina, faziam voto de castidade e obediência e só não ministravam sacramentos porque não eram padres.
O objetivo das AMC era atrair as crianças e os jovens rapazes com jogos e diversões e assim trazê-los para o seio da Igreja.
Havia no barracão diversos jogos e entre eles, mesa de ping-pong, sinuca, pebolim, jogo de damas, uma quadra para jogar espíribol e o supra dos suprassumo, um autorama, que era o sonho de todas as crianças e ficava guardado; só podíamos brincar quando o Irmão Pompeu ficava ou deixava alguém tomando conta.
A única exigência para fazer parte da AMC era assistir a missa no domingo.
Ficávamos lá nos finais de semana, eu com 9 anos de idade, meu irmão Beto com 11 anos. Nos divertíamos com outras crianças e meus pais, dentro das suas parcas condições, gostavam, pois estávamos em boas companhias.
Uma coisa inusitada ocorreu neste final de semana.
Somente eu, meu irmão Beto e um amigo de nome Salvatore, que tinha 13 anos, fomos à missa no domingo de manhã e consequentemente, todos, sem exceção, incluindo o Irmão Pompeu, foram na derradeira missa no domingo à noite.
Na AMC ficamos somente nós três brincando de ping-pong.
Já era noite e começamos a sentir um cheiro forte de flores e comentamos que não tinha nenhum jardim por perto, mas não demos bola.
De repente, ouvimos batidas fortes na janela oca do barracão.
Olhamos do lado de fora e não vimos ninguém.
Voltamos a jogar tênis de mesa e novamente ouvimos as batidas fortes na janela.
Tornamos a olhar do lado de fora e novamente não avistamos ninguém.
Quando retornamos à mesa de ping-pong, novamente bateram e ficamos bravos com tanta impertinência que saímos na quadra para ver quem que estava batendo na janela.
Ao lado do barracão havia um local coberto com um tanque para lavar roupa.
Vimos então um menino, de aproximadamente uns 13 ou 14 anos, em baixo da cobertura ao lado do tanque.
Víamos o menino perfeitamente, mesmo já estando noite e não tendo nenhuma luz que o iluminasse.
O chamamos para entrar já lhe dando “bronca” por causa da brincadeira chata que estava fazendo.
Veio sorrindo, atravessando a quadra de espiribol, como se flutuasse e rapidamente entrou conosco no barracão da AMC.
Vendo que estávamos então em quatro, sugeriu alegremente que podíamos fazer parceria no ping-pong.
Concordamos e ele pegou uma raquete e se colocou no extremo da mesa em posição para jogar. Antes de iniciarmos a partida, um de nós perguntou de onde que ele tinha vindo, pois não o tínhamos visto.
Ele respondeu que estava na missa e que o padre estava fazendo o sermão. Os sermões, naquela época, eram muito longos e, às vezes, cansativos e por isso ele tinha vindo brincar um pouco e depois voltaria para a missa.
Neste momento o Salvatore bruscamente interrompeu-o e disse-lhe que ele não iria jogar. Ele perguntou se nós o conhecíamos e o Salvatore disse: “Não e nem interessa.”.
Meu irmão Beto intercedeu pedindo que o deixássemos jogar um pouquinho. Neste instante, meu irmão quis tocá-lo no braço e não o sentiu, mas não se importou com este detalhe no momento.
O Salvatore foi enérgico e rude ao dizer que não. Então o menino perguntou: “Com ordem de quem vocês não querem me deixar jogar?”.
Nós respondemos quase em uníssono: “Por ordem do Irmão Pompeu”. Ele fez uma cara de quem tenta se lembrar de algo e falou: “Irmão Pompeu... Irmão Pompeu... ah!!!... o Irmão Pompeu...”.
Falamos que todos estavam na missa e que o Irmão Pompeu ficaria muito bravo se soubesse que tínhamos jogado com alguém que havia “fugido” do sermão da missa.
Ele pediu para jogarmos um pouco e fomos categóricos em recusar. Dissemos que todos viriam após a missa e que ficaríamos até mais tarde brincando. Ele tornou a insistir, mas não teve jeito.
Então, conformado, abaixou a cabeça e saiu. Ficamos felizes com a sua decisão.
Ao sair pela única porta do barracão, ele obrigatoriamente passaria pela quadra para entrar pelos fundos da igreja. Não existia outra saída.
Fomos à janela para vê-lo passar e nada. Aguardamos mais um pouco e nada.
Meu Irmão, neste instante, relatou que começou a ouvir um coro de vozes cantando e alguns objetos moverem-se sozinhos.
Foi quando começamos a prestar atenção nos detalhes do cheiro das flores, de como o havíamos visto claramente na escuridão, do flutuar ao vir em nosso encontro na quadra, do meu irmão não conseguir tocá-lo.
GELAMOS DE MEDO.
Pegamos os tacos de sinuca e ficamos preparados para qualquer eventualidade, mas nenhum de nós teve coragem de sair do lado de fora e tentar achar o menino.
Acabou a missa e começaram a retornar os meninos e nós três chorando, apavorados, olhando atentamente para todos para ver se ele realmente voltava junto com os outros.
O Irmão Pompeu percebendo algo errado veio falar com a gente. Contamos-lhe o que havia ocorrido e os detalhes que não tínhamos prestado atenção até aquele momento. Ele nos perguntou como que era o menino.
Falamos que era um menino claro, ruivo, um pouco sardento, magro, vestido de calça jeans com uma camisa estilo caipira xadrez amarela, típico de festas juninas e que hoje chamam country.
Ele pensou um pouco e pediu para nós esperarmos que ele fosse até o dormitório e já voltava. Naquele tempo era costume nas missas de sétimo dia, fazer um santinho com mensagens e com a foto do falecido para distribuir aos que fossem na celebração.
Passado um breve tempo retornou o Irmão Pompeu com vários santinhos de sétimo dia e nos entregou para vermos as fotos.
Em um destes santinhos encontramos a foto do menino que tinha nos visitado. Irmão Pompeu então nos contou a historia dele.
O seu nome era João Carlos. Ele fez parte da AMC e morreu um ano antes de nós ingressarmos, por isso não o conhecíamos. Era muito devoto e piedoso. Havia falecido numa quinta-feira santa durante a missa, logo após comungar.
Recebeu a comunhão e voltou ao seu lugar, ajoelhou e colocou a cabeça em cima das mãos em oração. Quando notaram que ele não levantava e continuava ajoelhado, ao chamá-lo, perceberam que estava morto.
Comentou também Irmão Pompeu que as batidas na janela eram a brincadeira que ele sempre fazia quando chegava à AMC. O Irmão Pompeu contatou a família do menino João Carlos e ela confirmou que a roupa por nós descrita, era a mesma com que ele havia sido enterrado.
Sempre pensei muito sobre esta experiência única vivida por mim, meu irmão e nosso amigo Salvatore. Se estivesse sozinho poderia ser uma imaginação ou um sonho. Mas não estava só. Então realmente houve o fato.
O que nos passou o espírito do João Carlos em todos os momentos em que esteve conosco foi de alegria e felicidade.
Porque com nós? Será que por causa de nossa tenra idade, especialmente a minha, e fossemos tão inocentes, podíamos visualizar outra dimensão?
Eu posso até não acreditar em nada, mas que existe outra dimensão, dêem o nome de céu, inferno ou o que quiserem a ela, existe... E se ela existe agradeço ao todo poderoso deem o nome que quiserem também a ele, por nos permitir a mim, meu irmão Beto e nosso amigo Salvatore sermos as suas, como se necessário fosse, “testemunhas”.
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