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Categoria - Outras histórias Um cachorro que nem “tinha” (e minha cicatriz no braço) Autor(a): Rubens Cano de Medeiros - Conheça esse autor
História publicada em 23/02/2015
Bem, minhas primeiras historinhas saíram de quando eu ainda detinha a posse da Facit “manual” - como se, por comparação, as máquinas “elétricas” IBM ou Olivetti “manuais” também não fossem. Eu então datilografava os textos. “Minutas”, que um de meus dois filhos em seguida passava para a internet. Pelo menos, duas pessoas liam: eu e o co-piloto.
 
Primeiro conheci o site VIVASP, do Juliano Spyer, via Rádio Eldorado (belo nome, que mudou). Depois, descobri o Site SPMC. Ambos, louváveis. Ambos, guardiães da memória paulistana. Ambos, coração de São Paulo.
 
No inexorável transcorrer do tempo, as reminiscências eu continuei lembrando. E escrevendo – não mais dedilhando a Facit, tão companheira! Ingrato, dela me desfiz. Arrepender? Sim, mas... “Inês é morta”. Nunca mais máquina de escrever! Agora é tarde...
 
“Ah, não tenho mesmo mais o que escrever”, menti para comigo mesmo. “Ah, nem tenho a quem escrever”, tentei de novo me enganar. Bem, de fato o site VIVASP silenciou; afortunadamente, o site SPMC continua marchando. Hoje, quando calha a mim alguma tola recordação, a minuta agora é via caneta! Daí, o co-piloto bota “ela” no ar! No ar, como os DC-3 de minha infância...
 
Toda esta conversa mole para eu justificar que não simpatizo com teclados de micros. Não bastando, eu sequer enxergar os minusculíssimos caracteres de pontuação, não tolero as teclas molinhas, sensibilíssimas que, ao meu duro toque, o texto desliza, escorrega assim, ó: “llleeeemmbrrrrooo bbeeeemmm”... 
 
Relou o dedo, “dispara” qual metralhadora (da Revolução de 32)! Volta pra mim, Facit!
 
Destreza e paciência: quem tem parabéns! 
 
Facilitam-nos a vida, né? A primeira deve tê-la tido, provavelmente, o sujeito – quando “caiu” (pousou?), um domingo à tarde (crepúsculo?) quase no quintal de minha casa (na tangente geométrica). 
 
Bom, se é que não tenha sido mesmo um acaso. Paciência, isso ele teve, muita! Por ter logrado livrar-se – praticamente sozinho – do emaranhado de cordinhas e galhos – santa paciência!
 
Eu tinha de nove para dez anos, era a São Paulo de 1957. “Destreza”, por certo, eu nem sabia o que vinha a ser. Já “paciência”, muitos adultos mostravam o que era... justamente não ter! Contigo terá ocorrido igual, contemporâneo(a)?
 
São Paulo, a de 1957... Nem de longe, hein! Nem de longe imaginar-se-ia que os então “nem tantos assim”, os prédios altos nos bairros, acabariam resultando na absurda concentração – na esmagadora maioria, feiosos e sem graça – que determinou o perfil de São Paulo. 
 
Só que aquela São Paulo, que jornais elevavam à “metrópole” – A Gazeta, Correio Paulistano, Estadão, as Folhas, Diários (Associadas) . São Paulo era ainda bem fabril, de muitas chaminés e bairros operários, sabe-se, não?
 
 
Entre meus nove e dez anos, eis-nos – eu e meus pais – naquela casinha “de aluguel”, de quintalzão grande. Rua José Antônio Coelho, 736. Hoje (e já faz bom tempo), no lugar – sob outro número – um desses enormes prediões. Certamente junto dos alicerces, um ou outro tijolo da casinha de outrora – longínqua outrora...
 
Era uma Vila Mariana charmosa – ainda – a dos anos 50. Lá onde eu morava, moradores alguns (muitos?) “incorporavam” o trecho ao território do Paraíso. Talvez não só pela proximidade com o que, de fato, era “Paraíso”: a Brahma, o Colégio Ypiranga, a Santa Generosa, a Catedral Ortodoxa... Mas também por conta do ponto final do ônibus 48-Paraíso, Pelotas com Amâncio, bar do “seu” Pasqual. Certo, era quase Ibirapuera – Vila Mariana ainda, que teimosos garantiam: “Pa-ra-í-so!”.
 
E, muitos lembram, na São Paulo de 1957, comemoração (bela) do jubileu de prata da Revolução de 32, não? “Chuva de prata”, esplendor! – ainda me lembro. Em vários pontos da Cidade, de dia ou à noite (sob fachos de luz dos holofotes do Exército!). 
 
“Chuva” de milhares e milhares de triangulinhos – “papel-alumínio”, teriam sido, eles? – lançados de igualmente prateados DC-3, portas abertas! Inesquecivelmente lindo, para meus olhos de moleque! Nos triangulinhos – iniciativa do industrial Pignatari, não? – o brasão de São Paulo.
 
Ah, lembro bem. Meu pai juntou um montão deles para mim. Dos quais nem guardei unzinho, ingratidão! A mesma, que repeti com a Facit. “Ingratidão”: trago isso no peito?
 
Nos nove para dez anos, certamente – já não lembro exato – eu era moleque de calça curta e suspensório. Acho também (lembro menos ainda) que de corte de cabelo, falavam “americano”...
 
Julho de 1957, um domingo já noitinha, o vespertino... Mulher elegante, fina e charmosa que era, recendendo a jasmim, nos quintais, Vila Mariana – nas noitinhas a dentro – ostentava como que um infinito colar de pérolas (madrepérolas, ao menos). De muitas “voltas” (digo, ruas), luzinhas brilhantes, as lâmpadas de filamento, nas ruas como o longo retão da José Antônio Coelho – que eu, moleque, comprazia de ver acenderem. As contas do brilhante colar... Vila Mariana: do ônibus 11, bonde 27. Cruzavam o Paraíso.
 
“Paraíso”, também, era-me o imenso quintalzão da pequena casinha. Terra, árvores, plantas e um gramadão! Gramado, para minha mãe, quaradouro das roupas lavadas no tanque; para a molecadinha do “entorno”, campinho! (entorno: corte na primeira sílaba, e ela dá duas com valor de uma – em torno).
 
Quintal que era adjacente a uma face de colossal chácara (na verdade várias, geminadas), um horizonte ilimitado que, na ausência de prédios altos no “entorno”, deixava vislumbrar Moema, Ibirapuera, Jardim Paulista, até quase Itaim-Bibi.
 
Naquele domingo à noitinha, eu e meus pais... Na certa, retorno de algum passeio, casa de parentes – alguma lonjura que a precariedade e morosidade da condução tornava ainda mais longe... Era coisa de bonde+ônibus+ônibus+bonde, a “cansar” de vista. E há, por certo, quem reclame do metrô!
 
Velhinho... Foi só passarmos pelo portão de madeira, da rua... Girar a tramela... Adentrar a escuridão – só iluminada pelo luar... “Que é isso, hein?” – pensamos nós três ao mesmo tempo. Pois lá no fundão dava para ver, por detrás da ameixeira, das bananeiras... Esquisito, sô! “Que é isso, hein?”.
 
Por cima de um dos pinheiros, iluminado pelo luar, à primeira visão, um enorme “lençol” branco – um monte de cordinhas enroscadas no pinheiro – e um camarada um tanto dependurado, um tanto já no chão. 
 
Cheguei perto, ele inteirinho, mas “assustado”:
 
- Tem cachorro, aqui, moleque? Tem cachorro?
 
 Tinha não. Sossegou. Sossegou, o... paraquedista!
 
Uma observação: cachorro tinha, o do Osvaldo, nosso vizinho, irmão do Dionísio (meu pai) – ambos, paulistanos do Glicério. Era um cachorro “lulu”, ranheta e bravinho (talvez porque vivia acorrentado, coitado). Quando eu menor ainda – ah!, infeliz ideia – “chegaram-me” perto dele, o “Gaúcho” (o cachorro). “Fiu, fiu, fiu!”, alguém acordou o bicho. Imediatamente, ele me tacou uma mordida no antebraço esquerdo. Tenho a cicatriz até hoje – faz mais de sessenta anos. 
 
Se chorei? Não... mais que bastante! Confiro vez ou outra: a cicatriz ainda resta, à flor da pele. É o que me restou, fisicamente, da Vila Mariana de infância: retrato de uma mordida.
 
Voltando à vaca-fria. Moço, cachorro não tem. Mesmo porque – não contei ao paraquedista – aquele que me mordera nem tinha como chegar aos pinheiros. Nem latindo, estava. Mas para furar meu antebraço... Sujeitinho nervoso, o tal “Gaúcho”!
 
Lembro, sim. Que o pinheiro nem quebrou. Mas entortou, curvou – vi no dia seguinte. Paciência, o paraquedista teve. No escuro, hein!
 
Livrar-se das cordas, dos galhos... Só ele – “suzinho”, diziam alguns – até que chegaram dois ou três colegas do ar. Eu... “fui para dentro”, ordenou o general – digo, minha mãe. Não deu repercussão. Ninguém da rua entrou na chácara. Soube-se depois. Nem jornal, nem polícia. Só testemunhamos, eu, vagalumes (que brilhavam) e grilos (cri-cri-cri...). As flores da chácara, elas dormiam. Idem, borboletas.
 
Moleque de então, fiquei depois sabendo. Como parte da comemoração do Jubileu de 32, paraquedistas civis saltaram. Também de luzidios prateados DC-3 (da Cruzeiro do Sul, se não me engano) para lograr pousaram nas proximidades do Obelisco, não longe de onde eu morava. Na tardinha do domingo.
 
Capricho eólico, o vento deve ter desgarrado aquele. E, senão por acaso, com destreza – “manobrando” as cordas – ele deve ter desviado de fios e telhados para, com relativa segurança, pousar na chácara, que obviamente notara. Assim, a imensa chácara de “seu” Joaquim ganhou um pinheiro torto!
 
Ironia do destino. Aquele salto, homenagem aos paulistas das trincheiras, deixou o pinheiro curvado – como um soldado constitucionalista, o peso do fuzil e petrechos, às costas... O episódio foi irônico. Para o moleque, inusitadíssimo. Para o “Gaúcho”, uma chance (de morder outro) perdida.
 
Dias seguintes, um ou outro moleque me interroga, colhe algum depoimento de mim. O “italianinho” é um deles.
 
- Ô, “iscuita”, caiu “uma” “paraqueda” na tua casa?!
 
- Ô se caiu!!!
 
- Foi nas “telha” que caiu?
 
- Quase que foi!
 
- “Intão” foi nas “pranta”?
 
- No pinheiro. O “home” enroscou tudo!
 
- Quebrou as “perna”, veio ambulância?
 
- Quase morreu, mas “nóis” “tiremo” ele.
 
- Puxa vida, hein!
 
- Eu nem deixei o cachorro morder ele! (não o Gaúcho, mas o outro, que nem “tinha”).
 
Fim. Ufa!
 
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Publicado em 01/03/2015

Rubens, boas lembranças de um tempo que não volta mais, a velha máquina de escrever, parabéns pelo saudoso texto.

Enviado por Nelinho - [email protected]
Publicado em 28/02/2015

Rubens, seu texto é maravilhoso, amei a ajuda que você pode ter de seus netos e filhos para digitar, continue nos presenteando com suas histórias, essa por sinal foi muito engaraçada.

Enviado por Julia Poggetti Fernandes Gil - [email protected]
Publicado em 26/02/2015

Sua crônica, Medeiros é uma especie de "sketch", (esboço) de um trabalho a ser elaborado. Como está, bem explícito, aborda os anos de 1950, sem necessidade de uma maquiagem. Os saudosos tempos do fim da segunda grande guerra e o início da era eletrônica, nunca vou esquecer aqueles anos. E vc arremata sua narrativa como se fosse o "Jua Bananera", famoso livro de Marcondes Machado, emprestando os palavreados dos italianinhos de minha época.

Parabéns, Rubens.

Modesto

Enviado por Modesto Laruccia - [email protected]
Publicado em 25/02/2015

Rubens, muito bom a crônica, muita coisa que relatou coincidiu com minha vida e experiência com os diversos meio de comunicação e cada vez mais moderno ou nos adaptamos ou "morremos", parabéns, Estan.

Enviado por Estanislau Rybczynski - [email protected]
Publicado em 24/02/2015

Eu não estava neste site nas suas primeiras histórias,mas esta de ao menos seus filhos colaboradores terem lido, tenho certeza que muitos as leram...

Morei no Ipiranga 15 anos e depois na Vila Gumercido,por mais de 15 anos, e criei meus cinco filhos lá na R.Nª Sª da Saúde de onde até hoje uma das minhas filhas ainda mora...

Nunca fiz datilografia e nunca escrevi a máquina,pois sempre fui recepcionista e telefonista na época onde tudo era escrito a mão em cartões que ficavam em uma caixa de madeira na ordem alfabética.(será que alguém lembra disso? notas fiscais,livro de ponto,fichas no arquivo,tudo escrito a mão) mas eu adorava o barulho da máquina de escrever do meu patrão e achava lindo ele dedilhando aqueles teclados barulhentos...

Eu também já escrevi muitas histórias e cartas familiares a mão,já tendo a internet a todo o vapôr e chuva de e-mails das pessoas...Eu não conseguia me familiarizar com esta tecnologia que chegou mansa e disparou de uma forma tão assustadora que nem imagino onde vai chegar.

Aprendi a ligar o computador e treinei as primeiras palavras dedilhando as teclas como se estivesse no pré primário e assim foi evoluindo...Minha neta me cadastrou no face book e eu tive a imensa felicidade da sabedoria de um primo irmão montar uma rede no face e cadastrar todos os membros a família ROCHA da qual eu pertenço por parte da minha inesquecível mãe e assim tenho diariamente pelo face notícias de todos os tios e primos que conheci e os da 3ª e 4ª geração que só conheço virtualmente

Agora minha outra neta montou no whatzap um grupo da minha famíla de irmãos filhos,noras,genros e netas,dos quais a gente se fala e troca mensagens quase que diariamente,e eu me realizo vendo as travessuras dos netos pequenos e as fofocas e comentários das netas maiores e filhos,noras genros etc....

Mas esta é uma tecnologia necessária que eu uso o resto eu detesto e nunca vou entender uma pessoa que não desgruda do celular ou i fone o tempo todo e deixa a vida passar sem ver o que acontece em volta.

Feliz da nossa geração que temos muitas e saudosas histórias para lembrar e contar,temos um passado e prestamos atençâo no futuro...Pena que isso tudo se acabou com a globalização e tecnologia demasiada que envolveu e sugou a vida das pessoas...

Enviado por Walquiria - [email protected]
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