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Categoria - Outras histórias Memórias de um taxista Autor(a): João Felix - Conheça esse autor
História publicada em 06/01/2015
Noite trágica do dia de Natal de 1960.
 
Para nós taxistas, o fim de ano com as festas natalinas e a passagem do ano eram bem estressantes. E quem se dispunha a trabalhar, poderia fazê-lo ao extremo, porque naquela década de 1950 o povo, de maneira geral, usava o táxi. 
 
Durante o ano inteiro era artigo de luxo, ou de emergência, como ir a um enterro ou um casamento. Nessa época de festas natalinas e ano novo todo mundo se locomovia usando o táxi como transporte, mesmo porque a indústria brasileira ainda não tinha deslanchado e pouca gente tinha o poder aquisitivo de ser proprietário de um automóvel.
 
Para mim e meu pai essas épocas eram a que trabalhávamos a exaustão.
 
Nesse ano de 1960, o Natal para mim foi muito triste. Tinha perdido meu pai que faleceu de enfarto fulminante no dia 24 de Novembro e foi sepultado no dia 25, exatamente um mês depois do dia de Natal. 
 
Naquele Natal levantei cedo e trabalhei ate à 13h, pois fomos almoçar na casa de um amigo da família. Era o primeiro Natal sem meu velho na cabeceira da mesa, comandando nosso almoço Natalino. Lembro que aquele dia choveu muito. Assim também como na véspera. E ouve enchentes na cidade de São Paulo. 
 
Nós almoçamos na casa do Abelardo, meu grande amigo que morava na Rua da Alfândega. Pelas quatro horas da tarde já estávamos em casa, e não planejávamos mais sair pelo resto do dia. O meu filho mais velho tinha pouco mais de um ano e a Lourdes, minha esposa, esperava o segundo filho para fevereiro. Enquanto isso, eu paparicava meu garoto em casa. 
 
Foi quando Luciano, amigo de infância, tinha convidado a noiva para almoçar na casa dos pais dele. E como chovia, ele me pediu se eu podia levá-la para casa. Ele só iria deixar a Ivete em sua casa no Ipiranga, e voltaria comigo. Isso evitaria que eu me envolve-se com outros passageiros pelas ruas de São Paulo. Eram mais ou menos 17h30.
 
Sai em direção ao Bairro do Ipiranga, nas imediações da Cipriano Barata, onde ela morava. Quando atingimos a Avenida do Estado, na altura da Rua Ana Nery, onde atravessamos a ponte para pegar o lado oposto da avenida dividida pelo Rio Tamanduatei, percebi que o rio estava quase transbordando. 
 
Ao chegar perto da “curva do S”, que dava caminho para quem quisesse ir para a Vila Prudente, notamos que havia acontecido algum acidente ao lado da ponte do rio. Não demos muita importância... E assim, chegamos ao Ipiranga e esperei pelo Luciano, que logo retornou. 
 
Já na volta, outra vez pela Avenida D. Pedro, chegamos à “curva do S” e notamos que realmente algo grave tinha acontecido. A Guarda Civil de São Paulo, que na época comandava o policiamento, tinha dois fuscas estacionados ao lado do rio e um carro do Corpo de Bombeiros fazia trabalhos de busca. 
 
Pelo que diziam os presentes, uma Ramona (uma Chevrolet dos anos 30) havia perdido a direção e se precipitou naquele rio barrento e quase transbordando. Eram o Pai e três filhos...
 
Naquele momento, estacionamos e fomos olhar mais de perto. Perguntei ao Guarda Civil de um dos fuscas e ele, com os olhos cheios de lágrimas, acendeu a luz interna do carro e presenciei a cena mais dantesca de toda a minha vida: uma menina de 2 anos, um menino de 3 e outro de 6, que tinham acabado de ser retirados do rio pelos bombeiros. 
 
As crianças estavam sentadinhas, duas no banco de trás e uma no banco da frente, com os olhos aberto ainda cheios de água. A primeira coisa que pensei foi nos meus filhos João e no Gilberto, que estava por nascer.
 
Chorei copiosamente por aqueles anjos como se fossem meus filhos. Essa cena nunca mais se apagou da minha mente, eu realmente fiquei traumatizado. 
 
O pai das crianças logo foi retirado também. Era uma família portuguesa. O nome dele era Antonio Santos Pereira, e era dono de uma padaria no bairro do Ipiranga. Depois de almoçar com a família, que moravam na Avenida Canindé, pertinho onde hoje é o Campo da Portuguesa, resolveu levar as crianças a um passeio. 
 
Antes, foi até a padaria para ver como tinham sido os negócios naquele dia. E na volta, talvez com alguns copos de vinho, coisa muito normal para a época natalina, especialmente para um cidadão português acostumado a esse tipo de comemoração num almoço de festas; talvez também por alguma falha mecânica num carro antigo... morreu com seus entes queridos. 
 
Da família só sobrou a esposa, que cheguei a conhecer depois. Acompanhei o enterro que foi realizado no cemitério do Brás da Quarta Parada. 
 
Já faz cinquenta e quatro anos desse nefasto acontecimento, mas sempre que vou a São Paulo, visito o Jazigo da Família Santos Pereira onde estão a “Teresinha, nascida 15-8-1958”, “Ricardo, nascido 12-2-1957”, “Bertinho, nascido 18-6-1954” e junto com eles o Sr. Antonio Santos Pereira, que tinha pouco mais de 40 anos. Todos falecidos no dia 25-12-1960. 
 
Que Deus lhes de muita paz e muita luz, amém!
 
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Publicado em 20/01/2015

Que descansem em paz.

Que bom amigo vc é, nunca se esqueceu de visitar o jazigo deles.

Enviado por Benedita Alves dos Anjos - [email protected]
Publicado em 16/01/2015

Felis, lembro-me bem dos anos 60 quando era muito difícil conseguirmos um táxi na época de festas, é uma pena que para o amigo a data traga momentos de tristeza mas infelizmente é a ordem natural da vida e nós infelizmente não temos o poder de mudar, parabéns pelo texto.

Enviado por Nelinho - [email protected]
Publicado em 09/01/2015

Prezado Xará, o ano de 1.960, tb. p/ minha familia foi fatidico, no dia 25 de Janeiro, perdi aquela que foi o maior amor da minha existencia, a minha mãe, mas não uma morte ocasionada por doenças ou ataques do coração, mas morte violenta por tiros de revolver, mas o que fazer, afinal não é por acaso que temos tantas coisas guardadas na memoria e no coração, mas como espirita eu entendo que estes fatos estão já pactuados nos seres ainda quando espiritos, pois assim como as grandes tragedias como o edificio Jelma de triste memoria, todos os mortos eram comprometidos com passados de grandes regates carmicos, e ali naquele episodio foi completado seu ciclo de resgate, no caso em que vc. cita o pai e os filhos me parece ser tb. um caso de resgate familiar, mas tenha a certeza que "Deus" não desampara ninguem e estas pessoas, pai mais as criaças, não tenha duvidas foram recebidos triunfalmente no lado espiritual, Parabens pelo seu sentimento e recordações de um passado que fica indelevelmente marcado nas nossas lembranças. abraços, Marquezin

Enviado por João Marquezin - [email protected]
Publicado em 08/01/2015

Que triste história, João, marcou tanto sua trajetória de vida que até hoje você não deixa de visitar seu jazigo. Que DEUS o abençoe e te guarde.

Enviado por Julia Poggetti Fernandes Gil - [email protected]
Publicado em 08/01/2015

João, realmente a tragédia foi inesquecível. Nem consigo imaginar o tamanho da dor da mãe das crianças. Perder toda a família, exatamente no dia de Natal... é inacreditável.

Por outro lado, gostaria de parabenizar a sua sensibilidade, a sua atenção e o carinho dispensado à família passados tantos anos, Um abraço, meu querido. Felicidades prá você e para todos queles que se foram, naquele fatídico dia.

Enviado por Vera Moratta - [email protected]
Publicado em 08/01/2015

Felix, haja memória e creio que alem disso ela está sempre de volta, pois nossa cidade continua a mesma em termos de enchentes, onde pessoas e carros são levados pelas correntezas dos rios inundados assim como as ruas todos os anos, parabéns pelo texto, Estan.

Enviado por Estanislau Rybczynski - [email protected]
Publicado em 08/01/2015

Que saudades de você!!! é tudo tão triste de se ler e de se lembrar que a gente se sente dentro desta história...Eu também fui surpreendida pela enchente em 1985 nesta avenida próximo ao museo do Ipiranga perdi completamente o carro uma Caravam que foi levado pelas águas,mas salvamos a as nossas vidas eu e meus 4 filhos que saíram do Colégio Cardeal Motta na época Moradores nos ajudaram e nos socorreram

Parece que nada mudou,só piorou estas tragédias nas fortes chuvas

Fiquei muito surpresa com sua memória não de taxista e sim de um grandioso ser humano... Estou muito feliz com sua volta!!!

Enviado por Walquiria - [email protected]
Publicado em 07/01/2015

parabéns joao felix pelo seu texto. infelizmente você precensiou uma tragédia envolvendo crianças isso e muito triste.

mas sempre e tempo de fazer uma homenagens ao mortos.

que todos já devem estar ao lado de jesus cristo AMEM.

Enviado por João Cláudio Capasso - [email protected]
Publicado em 07/01/2015

Antes de mais nada um forte abraço meu querido amigo Felix. Vamos ver se este ano o Coringão deslancha. A história é comovente, e acredito que você como taxista tem um punhado delas em sua mente. Espero que os furacões passem bem longe da sua morada. Felix ano novo. Aureliano ...

Enviado por José Aureliano Oliveira - [email protected]
Publicado em 07/01/2015

Modesto quero aproveitar este comentario para ver se voce lembra desse meu amigo que cito no meu texto o Abelardo que morava na Rua da Alfandega quase na esquina Fernandes Silva ao lado daquele bar que tinha com a Alfandega , esse meu grande amigo ja falecido a uns tres anos era aquele chefe da linha de producao dos Laboratorios Fontoura e que de acordo com voce lembro que ele foi chefe da sua falecida irma e tambem da Lourdes minha esposa assim tambem como da Maria Ricupero que casou com ele em 1959 .Ele tambem era genro do Modesto Ricupero(seu chara) , e que morava tambem na Rua da Alfandega quase esquina da Assuncao o Modesto era chefe de distribuicao dos jornais das Folhas na Barao de Limeira e era tio do Rubens Ricupero o Ministro da Fazenda do plano Real e que estudou la no Romao Puigari donde fizemos o primario, ele morou la na Alfandega quando menino em frente da casa do Modesto que era irmao do pai dele.Voce ve como e a vida, sempre estivemos tao perto ,e ao mesmo tempo tao longe.Abracos my Brother and a Very Happy New Year. Tenho certeza que voce gostara deste meu comentario. Felix

Enviado por João Felix - [email protected]
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