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Categoria - Nossos bairros, nossas vidas Amassando barro no fim do mundo Autor(a): Carlos Fatorelli - Conheça esse autor
História publicada em 28/11/2013

Saímos da Vila Nova Conceição, na década de 50, para irmos “morar no mato”, pois assim falavam nossos parentes; mas o que poderia fazer meu pai Ernesto, um operário que como tantos outros eram “expulsos” para mais longe de São Paulo? Os recursos eram parcos, não se dava casa com as facilidades da atualidade, não havia “Minha Casa, Minha Vida”, existia somente a vida, nem bolsa disso ou daquilo, apenas uma “algibeira vazia de sonhos” de muita gente conduzida por uma garra enorme de tentar construir alguma coisa que poderia-se chamar de seu!

 

Meu pai já tinha vindo para a região de Santo Amaro de bonde e descido nas cercanias do Largo São Sebastião, atual Bonneville, onde ficavam corretores para apresentar os “jardins” que se formavam e foi através de um deles que meu pai conheceu o Jardim São Luiz, com “Z” mesmo, que havia sido regularizado no final da década de 30, mas ninguém ousava vir para “esse fim de mundo”. Hoje, está bem diferente, brinco que moramos também nos Jardins, mas que não é o Jardim Europa, nem América, mas sim o São Luiz!

 

O “véio” veio de lá todo entusiasmado com um bocado de promissórias nas mãos, eram as prestações de um terreno de dez metros de frente por trinta de fundos. Fez nele um barracão de madeira, bem aprumado, estilo daqueles que ele havia visto na divisa do Paraná com São Paulo, quando era moço e vivia a colher café pelas fazendas. Os banheiros eram do lado de fora, pois a latrina era “direta e reta”, não tinha esgoto de concessionária, não tinha energia elétrica, não tinha “nada”.

 

O caminhão partiu lá da Vila Nova Conceição, com as tralhas de minha mãe Elza, uma bicicleta de meu pai, comigo e a mãe na boléia e meu pai na carroceria. O Fordeco velho gemia no caminho da velha estrada de Santo Amaro, comia poeira amarelada que misturava com o enfumaçado do caminhão e rasgava o tempo todo um caminho esburacado. Diante de nossos olhos parecia um “mato grosso” todo fechado, que até a luz do sol pedia licença para entrar e chegando próximo ao destino dava para vislumbrar uma ponte da Light que ligava os extremos do Rio Pinheiros, ainda de águas límpidas ou próximo disso.

 

Quando entramos pela rua principal avistavam-se morros para todos os lados, o meu pai tinha adquirido um terreno “que dava até para pegar o Céu com a mão” e cercado por mata verdejante, não havia na época cinquenta casas no lugar, era “bem” longe de São Paulo, e não havia nem transporte coletivo, isso era artigo de luxo, pois passava uma linha que ligava Itapecerica da Serra até Santo Amaro da viação Emílio Guerra, que passava um dia “talvez” e outro dia “jamais”!

 

Era ali que nós “íamos fazer nossas vidas”, sem bolsa família sem bolsa gás, porque nem precisava, cozinhava-se na lenha. O chão da cozinha era terra dura batida, o quarto tinha assoalho de madeira, em tempo frio era quentinho e no calor fervia. O banheiro tinha chuveiro “moderno”: era um balde, amarrado em uma corda, onde havia sido soldado um chuveiro com um registro, ensaboava-se todo o corpo e depois enxaguava tudo de um só vez, e se a água não desse saia ensaboado mesmo. O sabão era feito de gordura com soda cáustica, misturado com cinzas, falavam que era pra branquear roupa, mas nelas se usava pedra de anil para o mesmo feitio, não dava para entender essas práticas, eu aceitava e acabou, morria o assunto, não havia muitas perguntas.

 

A “bufunfa”, ou seja, o dinheiro, era curta, mas não podia faltar para a prestação do bem mais precioso, que era o terreno, assinado por compromisso de compra e venda, que se pagava na “cidade”, na Rua Brigadeiro Tobias, para a Sociedade Paulistana de Terrenos.

 

Foi assim o começo de muita gente que se enveredou por esse “mundão afora de São Paulo”, não se invadia nada, tudo era comprado com dinheiro “minguado” e era pago “religiosamente”. Hoje, pode tudo, meu pai iria até gostar de ganhar um terreno, uma casa, água encanada, pois a nossa foi de sarilho em poço de 35 metros cavado no barranco onde estava a casa e a fossa para detritos era um buraco de seis metros, que se esgotava de tempos em tempos, nada da “massa” ir para o Rio Pinheiros.

 

Agora, no século 21, o “edil” quer cobrar “caro” o imposto, algo realmente “imposto, na marra”, mas ele não tinha nem nascido e muita gente já amassava barro na lama das ruas dos incipientes bairros paulistanos, pois nem havia asfalto. Assim nasceram muitos bairros afastados da periferia de São Paulo e se há semelhança é mera coincidência pela periferia paulistana!

 

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Publicado em 04/12/2013

Fatorelli, hoje tudo bem diferente.Minha família também sofreu muito até conseguir uma casa própria para morar.Parabéns pelo texto.

Enviado por Margarida Pedroso Peramezza - [email protected]
Publicado em 02/12/2013

Meu amigo, lendo esta sua história de vida,vi a minha passar pela minha mente igualzinha a sua...O terreno,o barraco sem luz e água de poço o banheiro ao lado de fora e o nosso chuveiro que era um balde com água morna esquentado no fogão a lenha...Tudo isso para fugir do aluguel e ter a casa própria...Chorei ao lembrar da minha mãe saindo as 4 hs da manhã depois de andar muito na terra vermelha ou barro quando chovia para ir trabalhar e nos criar com dignidade...andávamos uma hora a pé para chegar na escola e ela nos obrigava a estudar...

Escrevi para este site minha indignação de pessoas que conheço,com bom salário morando em casas dadas pelo governo perto de metrô e na fila para conseguir mais e pegam cestas básicas na igreja,no posto de saúde na comunidade etc...etc..é bolsa família,leve leite que não acaba mais

e eu cansei de dar chá na mamadeira para meu irmão caçula (a gente plantava erva cidreira no quintal) porque era fim do mes e não havia mais leite...

Enviado por Walquiria - [email protected]
Publicado em 02/12/2013

Satisfação imensa em conhece-lo pessoalmente, na cantina, Carlos, por fortuitas ocorrências, não pudemos conversar mais longamente. Mas, mesmo assim, foi muito bom.

Sua narrativa, Fatorelli, é um modelo acabado da "conquista do sul", modernamente executada por seu pai. Conheci o Jardim São Luiz quando visitava o Pão Pulman, na av. Giovani Gronchi. Narrativa brilhante e bem elaborada, Carlos, parabéns.

Laruccia

Enviado por Modesto Laruccia - [email protected]
Publicado em 29/11/2013

Carlos, que história magnífica de superação e força de vontade! Um pouco a minha história de vida passa por ai, quer dizer, dos antepassados. Como a maioria dos brasileiros. Parabéns mesmo. Gostei muito do relato. Um abraço.

Enviado por Vera Moratta - [email protected]
Publicado em 29/11/2013

Recordações bairristas e barrentas, parabéns, Carlos.

Modesto

Enviado por Modesto Laruccia - [email protected]
Publicado em 29/11/2013

Carlos, não é só pelas bandas de Santo Amaro não. Em 1944, meu pai comprou um terreno, um pouco alem da ponte grande, onde hoje é Santana, veja bem Santana. E o povo falou que ele tinha ficado louco.

Enviado por Marcos Aurelio Loureiro - [email protected]
Publicado em 28/11/2013

Verdade, tem muita semelhança, meu pai também fez o mesmo, também tivemos poço no fundo do quintal e durante muito tempo nossa casa não teve muro nem portão de aço, era cerca de bambu. Mas valeu à pena.Forasm nossos heróis de verdade.

Enviado por Julia Poggetti Fernandes Gil - [email protected]
Publicado em 28/11/2013

Carlos, e como amassamos barro, creio que até os anos de 1970, onde havia por aqui no JARDIM SÃO LUIZ E VILA DAS BELEZAS, somente alguams ruas asfaltadas, Estan

Enviado por Estanislau Rybczynski - [email protected]
Publicado em 28/11/2013

Seu pai conseguiu fazer suas vidas em Sto Amaro.

E tenho certeza que os filhos dão muito valor para o que conseguiu com muito suor e sacrifício.

Estes eram nossos pais.

Enviado por Benedita Alves dos Anjos - [email protected]
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