Leia as Histórias
Quando jovem, você teve a infelicidade de fazer tratamento naqueles dentistas de antanho, verdadeiros “megarefes”, que trepanavam seus dentes com aparelhos de baixa rotação, sem anestesia?
Eu sim, e acredito que deveria ser coisa próxima das futuras sessões de tortura no DOI-CODI, ao qual felizmente nunca tive de comparecer. Além da dor, o ruído nos perfurava os tímpanos, vibrava toda a cabeça, os membros hirtos tremiam.
Pois foi assim que nos sentimos naquela manhã, quando a obra começou. Um perfurar giratório, como buscando as profundezas da terra, um saca rolhas gigantesco, uma daquelas máquinas infernais que surgiam nas velhas páginas de Flash Gordon, a serviço de Ming, o Impiedoso.
Constatamos: era o grande laboratório sendo destruído. Há quantos anos ocupava um quarteirão do Brooklin, sendo um dos marcos, um ícone da região. É perto da Abbott, dizia-se, e a pessoa se localizava imediatamente. Sua imensa caixa d’água alteava-se sobre o bairro, dominava a paisagem, antes que os espigões de vinte e cinco andares começassem a brotar como cogumelos.
Nada é para sempre, embora a Abbott ainda aparentasse ser. Mesmo quando foi vendida à Farmasa, suas muitas atividades continuaram. E, quando menos se espera, ei-la sendo demolida- és pó, e ao pó voltarás.
Quando contei isso a um amigo, que morara na Rua Pensilvânia, perto da esquina da Abbott, ele até engasgou. O barulho continuou, brocando as estruturas antigas e os nossos ouvidos. Passando ao largo, podíamos ver montanhas de entulhos, tubos e canos retorcidos se acumulando, como as ruínas de Berlim após a Segunda Grande Guerra.
Não havia volta. E o futuro? Que surgiria dali? Uma vizinha, destas que tudo vêem e tudo sabem, trouxe a primeira notícia. Bastante consoladora; ao invés de novos arranha céus, um condomínio horizontal. Assim fosse.
Mas, novas informações: ao invés, seriam seis altíssimas torres de apartamentos. Até imaginamos- mais milhares de carros sendo despejados nas antigas ruas, antes tão pacatas.Como absorver mais essa nova multidão automotiva?
Olhávamos para o sul, de onde vinham os ruídos, e as notícias assustadoras. Parecia uma guerra avançando no horizonte, as tropas inimigas ultrapassando as trincheiras e esmagando qualquer resistência. Uma Linha Maginot, ou melhor, Imaginot, uma vez que não se podia prever o que viria.
Na manhã de hoje saímos para nossas andanças, e ao ver-nos divagando sobre os escombros, uma senhora que passava foi incisiva:
- “Pois eu sei o que vai acontecer aí! Vai ser um pequeno shopping, tendo apenas uma alta torre nos fundos!”
Tomara que tenha razão; até que não seria mau ter, tão próximo, um shopping. Poderíamos olhar as vitrines, tomar um café... Quem sabe até um cineminha, ou estou querendo demais?
De qualquer forma, meu humor melhorou. No bairro temos até um pequeno bosque, que não se chama Solidão... Temos cafés, restaurantes, bom comércio. Um pequeno shopping até que cairia bem.
Mas, é cedo para otimismo. A imensa caixa d’água ainda não foi totalmente derrubada. Quando cair, estará sepultada uma página da história do Brooklin.
E das insaciáveis construtoras não se pode esperar clemência, nem humanidade. Mas, afinal, São Paulo é mesmo uma caixa de surpresas, e quem sabe...
E-mail: [email protected]
Você precisa estar logado para comentar esta história.
A São Paulo Turismo não publica comentários ofensivos, obscenos, que vão contra a lei, que não tenham o remetente identificado ou que não tenham relação com o conteúdo comentado. Dê sua opinião com responsabilidade!
Abraços
Mancini Enviado por Mancini - [email protected]
Parabens
Alexandre Enviado por alexandre ronan da silva - [email protected]
E, infelizmente, a caixa dágua vai para o chão, sim, Giglio. Não querem deixar nem lembrança.
Pelo barulho que se ouve no momento, deve já ter sido a última a cair. Obrigadão, Pedro, vc contou os meus textos. É isso...abraços a todos. Enviado por Luiz Saidenberg - [email protected]
Um abraço e não desanimemos.
Vilton Giglio Enviado por vilton giglio - [email protected]
Será que não se consegue unir o passado com o presente, preservando obras antigas?
Será que o sinônimo de crescimento, evolução é destruir o antigo, é tão bonito ver um contraste de um prédio moderno com um antigo ao lado, aqui em Santo Amaro por exemplo estão derrubando tudo em nome do”progresso”, parabéns,Estan. Enviado por Estanislau Rybczynski - [email protected]