Leia as Histórias
É formidável viver hoje, com grande importância, aquilo que no passado, apesar de importante não fora vivido como devesse ser. Costuma-se dizer que um bom vinho não é saboroso no momento em que a rolha é removida da garrafa; o verdadeiro sabor vem depois de alguns momentos de descanso. Hoje, passado muito tempo, do distante final dos anos 50 e início dos anos 60, encontro-me bem descansado e, parafraseando a lição da degustação de um bom vinho, posso me transportar para a época em que a garrafa foi aberta, ou seja, em 1957 e alguns anos depois.
Trabalhava eu na Rua XV de Novembro, número 251, na Western, e cumpria vários horários semanais, em rodízio de 24h, ou seja, 6h às 12h; 12h às 18h; 18h às 0h e 0h às 6h. Especialmente nos períodos matutino e vespertino, os funcionários dispunham de 20 minutos (que se transformavam em 30), para um pequeno café. O lugar já estava tradicionalmente marcado, ou seja, Travessa ou Rua do Comércio, em frente a um restaurante (na época se dizia bar e restaurante) onde existia uma pequena estufa com lâmpada permanentemente acesa, no interior da qual se posicionavam esfihas abertas, com o peculiar aroma; a conhecida Esfiha do João.
João era um senhor bem afeiçoado, com trejeitos de pequeno comerciante (na época não se dizia empresário) e sua mulher, provavelmente descendente de árabes, cujo nome, se bem me recordo era Maria, Mais do que as deliciosas esfihas, cujo preço era "pendurado" até o final do mês, quando o salário nos permitia quitação, o que nos levava ao lugar era a oportunidade de bate-papo sobre tudo: futebol, política, músicas, cinemas etc.
Trinta minutos não eram suficientes para aqueles momentos de descontração. Eu, de minha parte, gostava da presença de uma pessoa que me fascinava pelo modo de vida que levava e que encontrava, na Esfiha do João, aconchegantes pessoas que não o discriminavam. Falo do Sucupira e seu auxiliar imediato, cujo nome não consigo recordar, mas bem nítida permanece a imagem servil daquele auxiliar voluntário.
Sucupira era um senhor de aproximadamente 60 anos de idade, sempre portando um guarda-chuva, chapéu escuro, camisa branca, gravata estreita e comprida e paletó abotoado. Costumava fazer alusão à etimologia das palavras ou, como no caso, a tradição árabe das esfihas, sem dizer que era exímio em lições de moral, a respeito da conduta ou do comportamento de transeuntes ou mesmo de alguns fregueses. Normalmente qualquer sustentação oral feita pelo Sucupira recebia, depois de breve consulta, aprovação de seu auxiliar que meneava a cabeça positivamente.
Um belo dia, não encontrei o Sucupira, no horário costumeiro, e perguntei à senhora Maria por onde andaria ele, ao que carinhosamente ela passou a narrar quem era aquela envolvente personagem. Era nada mais nada menos do que um grande advogado que, tragado pelo vício da bebida tornara-se alcoólatra e fora interditado pelo filho que ninguém conhecia. O filho sabia que o pai era fiel aos seus compromissos e tinha certeza de que, impossibilitado de deixar a bebida definitivamente, conseguiria sustentar o vício com alguns trocados que todos os dias recebia do mesmo filho.
O horário da bebida era matutino e daí o motivo pelo qual Sucupira frequentava a Esfiha do João, depois de bebericar no bar existente no lugar. Para não me alongar muito sobre essa pessoa que marcou minha vida, pelo fato de, em sendo alcoólatra, conseguir manter o vício com dignidade, foi uma cena que, de certa forma, me envolveu: havia eu solicitado uma esfiha e, indagado a respeito de querer ou não algumas gotas de suco de limão, Sucupira segurou o vidro de suco de limão, levantou-o como a examinar o líquido contra o sol e assim se expressou:
-"To be or not to be. That is the question! É uma tragédia, cuja caveira é a mistura na qual se adiciona o açúcar”! - e arrematou:
- “Por essa razão eu a prefiro pura!”
Embora eu entendesse razoavelmente o idioma inglês, porque trabalhava em um telégrafo inglês, no momento não entendi a referência. Sucupira, do alto de sua sabedoria percebeu minha mudez; olhou-me seriamente e perguntou-me:
- "Você conhece cachaça?”- respondi positivamente e ele prosseguiu:
- “E Hamlet?”.
Pelo meu sorriso ele percebeu que sim e por essa razão concluiu:
- “Hamlet e cachaça não se misturam, tome suas gotas de limão”.
Todos riram, mas, no fundo de minha alma, lamentei o fato de Sucupira enfrentar a grande prova de sua vida, sem deixar sua sabedoria, então transformada em piada. Hoje permanece somente a recordação, porque um belo dia que se seguiu a outros Sucupira desapareceu da Rua ou Travessa do Comércio, tanto quanto desapareceram o João e a Maria da esfiha. Mas nada impede de eu passar pelo local, parar e relembrar cenas que sequer passam pelas cabeças dos transeuntes de hoje.
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Laruccia Enviado por Modesto Laruccia - [email protected]
O João da esfiha também conheci e já foi citado em vários dos meus textos.
Obrigado pelas lembranças e pelo texto bastante agradável. Enviado por Miguel Salvador Gabfriel Chammas - [email protected]
Mês que vem estarei ai em minha querida sampa
Alexandre Enviado por alexandre ronan da silva - [email protected]
inesqueciveis e saborosos como os inconfundiveis sanduiches de cachorro quente..... Enviado por Airton Irineu dos Santos - [email protected]