Quando morava na Vila Formosa, pelos idos de 50, um bairro então carente de infraestrutura, e em crescimento, percebia-se que, abandonados pelas ruas do bairro, havia muitos cães vira-latas e gatos de toda espécie.
Recordo-me de uma passagem quando eu, um jovem cheio de superstições, deparei-me no meio da noite com um enorme gato preto que apareceu de repente. Olhos cintilantes, misterioso, saltitando pelas coberturas das casas experimentando então o doce gosto da liberdade, sorvendo daquela noite de verão a tranquilidade do silêncio.
Passava das 11h da noite, a falta de sono impeliu-me ao quintal de minha casa, anexa a outras casas com telhados desnivelados um campo fértil para um felino passear na noite. Por algum tempo ele andou sumido e por razão inexplicável senti sua falta.
Mas ele voltou, deve ter sentido a minha ausência também. Pontualmente como da vez anterior, passava das 11h, ali estava aquele bichano, embodocado em uma viga no ponto mais alto da casa vizinha. Resolvi fazer contato, aproximei-me o mais que pude, pigarreei, tossi, chamei-o de gatinho do papai e nada. Ele permanecia impassível com seus dois olhos amendoados fitando-me, como se estivesse julgando um crime.
Senti uma estranha fascinação por aquele felino. Em seguida, como um artista circense, ele resolveu dar uma demonstração de saltos e agilidade pelos telhados e áreas de serviço da vizinhança, e sumiu na escuridão.
Fiquei observando, admirado pelas proezas e a facilidade que aquele bichano tinha em escalar muros e superfícies, e percebi a desconfiança dos felinos em relação ao gênero humano, pelo distanciamento que o mesmo me impunha, pois acabávamos de nos conhecer.
Naquela noite meu sono foi agitado, trazia-me a lembrança daquele bichinho de olhar inquisidor extremamente individualista, orgulhoso pela sua condição de felino salteador sem receio de quedas, dominando os espaços e as distâncias, fazendo das cumeeiras e dos telhados da vida, seu palco de diversão.
Na noite seguinte lá estava aquele animal pronto para um novo espetáculo gratuito, quando um dorido grunhido se fez ouvir na escuridão, um vizinho malvado atirou uma pedra atingindo em cheio o peito do bichano.
Um último salto fora dado e o bichano desapareceu nas trevas da noite.
“Os animais foram imperfeitos…
O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso"
(Pablo Neruda – poeta chileno)
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