Fissurados por defuntos

Quando criança, como já relatei em outros textos, morava na Vila União, bairro próximo a São Miguel Paulista. Apesar de ter medo de defuntos, principalmente à noite, quando tudo era muito escuro e as sombras projetadas pareciam fantasmas a rondar-nos continuamente, quando ouvia falar que algum vizinho havia morrido, ia com minha mãe e minhas irmãs no velório. Lembro que, quando morreu "Seu" Santo, um velhinho que frequentava a mesma paróquia que minha mãe, fomos ao velório. Na hora do enterro, não lembro bem porque, minha mãe não estava lá, pois foi velado na casa dele.

Eu, minha irmã Ana e meu irmão Antonio, que éramos os três mais novos da tropa de dez irmãos, resolvemos acompanhar o enterro até o Cemitério da Saudade, em São Miguel. Detalhe: não tinha carro nem ônibus para irmos, mas tinha um caminhão, que, quando o defunto era muito pobre, isso na década de 60, os parentes alugavam para acompanhar o féretro. Pois bem, lá fomos nós, entramos na carroceria do caminhão, não por solidariedade ao defunto, mas por causa da bagunça, pois havia muitas crianças.

A questão crucial é que o defunto morava em uma rua paralela a que eu morava, e eu e meus irmãos ficamos torcendo para que o enterro não passasse em frente a nossa casa, pois sempre que morria alguém, as pessoas ficavam nos portões e calçadas para ver o enterro passar. O enterro poderia seguir pela Rua Minas Gerais, mas acabou seguindo pela Rua São Tiago, passando exatamente em frente a minha casa e nosso medo era que minha mãe nos visse, pois ela sempre falava que aqueles caminhões eram muito perigosos.

Quando o caminhão foi chegando perto da minha casa, avistei minha mãe e alguns irmãos que estavam no portão. A atitude mais rápida que tomei foi me abaixar, mas eles viram minha irmã e meu irmão. Não lembro se levamos alguns cascudos quando voltamos do cemitério, porque minha mãe ficava muito brava quando desobedecíamos. A correia de sola muitas vezes descia forte nos nossos lombos, sem dó nem piedade. De sola, sim, pois já escrevi no texto, Mestre Jorge, meu avô era sapateiro e essa correia era alguma rebarba de sola que caiu como uma luva nas mãos da minha mãe e como um chicote no lombo de nós, crianças desobedientes.

Hoje, se você dá um tapinha no filho para corrigi-lo, pode ir parar no Conselho Tutelar e responder por isso. Agradeço demais à minha mãe pelas surras que levamos, pois quando os pais corrigem os filhos, muitas vezes impedem que eles sejam corrigidos pela polícia.

Em outra ocasião, a nossa vizinha, D. Maria, morreu. Quando eu e minha irmã Ana soubemos, corremos para a casa da vizinha e qual não foi nossa surpresa quando, ao olharmos para a defunta, fomos "olhadas" por ela também, pois os seus olhos estavam arregalados. Que susto, gente! Saímos de lá mais do que depressa e voltamos mais tarde, não sem antes perguntar se os olhos já estavam fechados. “Tá” vendo o que dá ser fissurados por defunto?

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