Era uma vez a jamanta…

Só por curiosidade, este fragmento de "memória" de São Paulo. Coisa da década de 50, eu tinha nove anos (1956). Como é sabido, já à época a cidade apresentava, nas regiões mais próximas do Centro, trânsito conturbado: grande parte das vias ainda era de paralelepípedos e a pouca sinalização de solo não se aplicava a esse piso; quem "controlava" (literalmente) o trânsito eram os guardas civis, manejando os semáforos ou similares; nem havia CET, obviamente. Os bondes, ainda que utilíssimos, já "contribuíam" para atravancar o tráfego. E nesse cenário urbano surgia um "paulistano" que – com o propósito de minorar a já "eterna" insuficiência de condução – acabou por se tornar, também, de certo modo um trambolho…
Um coletivo – à época, por seu tamanho e capacidade, inusitado – que, nos poucos anos em que "viveu" na Paulicéia, certamente entrou para a memória do transporte. Li, não me lembro onde, que tal veículo era "produto da criatividade brasileira", em termos de transporte urbano. Entretanto – não tirando os méritos de nossos técnicos – o excêntrico veículo (uma jamanta, como "preconiza" o dicionário, q.v.) já tinha sido usado, por exemplo, nos Estados Unidos (e noutros países). Lá na América, à época da Segunda Guerra, pela famosa "Greyhound" (aquela, dos filmes de TV, do cão galgo, certo?). Para transportar trabalhadores às fábricas, no "esforço de guerra". Li num livro americano. E vi fotos deles.
Voltando à Paulicéia: o jornal "Última-Hora", de 6/3/1956, p. 3, primeiro caderno, tinha este anúncio: "Lançamento dos ônibus papa-filas. Começarão a circular brevemente as primeiras unidades (…) nas linhas que servem os bairros mais populosos, os ônibus que o povo batizou de papa-filas (…)".
Por que "papa-filas"? Ora, de "tão grandes" (à época), eles iriam papar (comer, devorar) as filas, aliviando assim a carência de transporte. Todos nos lembramos que, não há muito tempo, o mesmo termo veio modificado para "fura-fila", não?
E por que "exótico", esse veículo? Até então, inusitado, devido ao tamanho. Uma carreta, ou seja, um caminhão em que a carroceria é articulada à parte dianteira, como um vagão – parte dianteira que se chama “cavalo”, que contém a cabina (boléia) do motorista e o motor (ou seja, jamanta, segundo o dicionário). Muitos se recordarão: era um cavalo-mecânico Fenemê (feito no Rio, sob licença italiana) e a carroceria esta paulistana da gema: CAIO ou Grassi, tradicionalíssimas, então. Aportuguesando o termo, um semi-trêiler (trailer, inglês). A Brasinca, de São Paulo, também produzia cabinas para esses Fenemês. Ainda dizia aquele anúncio: "(…) capacidade para mais de 150 passageiros (…) 50 desses veículos serão postos em tráfego (…)". Sim, 150 pessoas, entre os devidamente sentados, os em pé e os "em pé, apertando os outros", isto é: tal qual sardinhas em lata…
Continuando a fuçar esse passado da Paulicéia, vamos conhecê-los: "Última-hora" de 12/3/1956, p. 9, segundo caderno. Anúncio da CMTC: "Convite ao povo: a CMTC convida o povo de São Paulo para assistir ao desfile dos ônibus papa-filas, amanhã, dia 13. Os ônibus partirão às 10h, do Vale do Anhangabaú, e percorrerão as ruas do Centro, dirigindo-se em seguida à Avenida Marginal – que será inaugurada pelo senhor Lino de Matos, prefeito municipal de São Paulo". Inaugurar a Marginal! Pois é: papa-filas e Marginal (Marginais) são contemporâneos! Não me recordo disso, porém. Ah! Cabe lembrar, também, que os chassis (ou plataforma) daqueles gigantes também eram paulistanos, pois feitos por Massari ou Trivellato, já não me recordo com exatidão. Que me corrijam.
A mesma "Última-hora", de 14/3/1956, 1ª p., então relata: "Com o desfile dos papa-filas da CMTC, inaugurada ontem a Avenida Marginal! O trecho pavimentado liga o Bairro do Limão à Ponte Grande; entregue ao tráfego a citada via, pelo prefeito da Cidade; os papa-filas representam importante melhoramento para os bairros sufocados com o transporte". Não me lembro se meu pai me levou ao evento, porém.
E – ainda – pitoresco registrar que, embora feitos para a CMTC (houve papa-filas noutras cidades), o "Diário Popular", de 1º/3/1956, p. 16, informava que o "protótipo" vinha rodando, em experiência, com as belas cores verde e amarelo da… E. O. Guarulhos! Carro nº 138, para ser exato, mostra a foto do jornal.
Duraram, quando muito, uns 10 anos, talvez menos. Viajei neles nas linhas Jabaquara e Osasco (então bairro de São Paulo), de que me lembro. O duro era, tirando o constante sacolejo, a gente conseguir descer realmente no ponto pretendido. Por quê? No trêiler, ficava o cobrador (que não se comunicava com o motorista!), o qual acionava as portas. O sinal, dado pelo passageiro, fazia acender uma luzinha – ou tocava, não me lembro bem – lá no cavalo-mecânico. Bastava esse sinal não funcionar e a gente ia descer onde o destino quisesse… O barulho do possante motor Alfa-Romeo, certamente, contribuía para "neurotizar" o condutor do veículo. Mas eu, moleque, adorava andar no gigantão, um pouco mais alto que os então ônibus convencionais… E o "destino", lógico, por conta do "progréssio" (Adoniran Barbosa), impôs que o destino dos semi-trêileres fosse o mesmo dos de qualquer equipamento mecânico: sucata. Não restou unzinho! Tornaram-se obsoletos.
Enfim: o papa-fila "entrou para a história" do transporte coletivo paulistano. Trabalhou duro. Transportou-nos a nós, paulistanos das décadas de 50 e 60, aos milhares. Ida e volta do trabalho, da escola, do lazer. Lento, barulhento, difícil de fazer certas curvas. Um martírio para ser ultrapassado, pelo tamanho. Naquela São Paulo, ainda, o "maior parque industrial da América Latina", procurou ser fiel ao compromisso pintado, em letras maiúsculas, pretas, na lataria, acima das janelas: "MAIS TRANSPORTES, MELHORES TRANSPORTES". A CMTC garantia. Hoje, no lugar dos papa-filas, rodam os articulados e os bi. O papa-fila seria acanhado perto deles. Porém, para mim, monstrengo bonito.
E, por final, neste 25 de janeiro, parabéns, São Paulo! Por 454 vezes, parabéns! São Paulo – também "terra" dos inusitados papa-filas… E era uma vez a jamanta!

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