Em Santo Amaro – de Florentina e Madalena

Madalena Moya nasceu no dia 01 de abril. Verdade!
O ano ela sabe aproximado, talvez tenha completos setenta e cinco anos de idade. Foi na cidade de São Paulo. Os pais vindos da Espanha passaram pela antiga Hospedaria de Imigrantes. Ele, José, por ser extremamente violento, mais tarde viria a ser expulso de casa pelos próprios filhos cansados de seus desacatos. A mãe, Purificacion, percorreu com o marido e filhos várias fazendas da região sudeste do Estado de São Paulo. Um dia conseguiram adquirir terreno financiado por empresa imobiliária que oferecia tijolos e telhas no bairro da Vila Nova Cachoeirinha. Era início do século XX, um tempo em que ainda estavam por lá as tais pequenas cachoeiras.
Quando ainda morava na área rural, a jovem Madalena buscava outros caminhos devido à convivência nesse lar turbulento, conheceu então e fez boa amizade com a mineira Florentina. Ela lhe apresentou um sobrinho, o José. Foi com ele que Madalena se casou. Esse José, um sanfoneiro nascido em Minas Gerais, trabalhava o dia todo como lavrador ou ainda construindo casas e nas noites de final de semana animava bailes em terra de chão batido. Claro que a família de Madalena protestou, porque além de tudo ele era negro. Foi aceito logo depois porque seu temperamento era calmo e alegre, porém adoeceu vindo a falecer com apenas trinta e três anos.
Ela, completamente atordoada, pegou a mão da única filha desse casamento e seguiu para uma fazenda na região de Itú. Isto aconteceu no ano de 1954 e por essa época ainda havia riqueza gerada pela produção do café determinando o crescimento de São Paulo. Nessas propriedades o que se encontrava era um trabalho duro, mas para pessoas guerreiras como Madalena, isso não assustava. O dinheiro é que era bem pouco. A Florentina também prestava serviços como cozinheira para esses mesmos proprietários fazendeiros de café. Com eles permaneceu por mais de quarenta anos. Criou com muito suor dois filhos, atualmente graduados.
Lá na sede da fazenda, Madalena conheceu então um jardineiro, o migrante sergipano Antonio. Casou-se e soube que ele havia adquirido um terreno no Jardim Pedreira, distrito do bairro de Santo Amaro.

Antonio, assim que chegou de Sergipe em caminhão pau de arara, naqueles anos cinqüenta, viu-se sem agasalho durante o forte inverno paulistano. Raciocinou ele que somente teria futuro se fosse proprietário de algum lote de terra. A propaganda da época era belíssima mostrando barcos navegando na imensa Represa Guarapiranga.
Para lá seguiram e tiveram dois filhos no mesmo ano! Uma menina, a Maria Aparecida, nascida em janeiro, e um garoto, o Carlos, em dezembro. Com os dois bem pequenos, Madalena e Antonio começaram vida na capital paulista morando em pequena casa construída nessa periferia da cidade. Logo depois nasceu o Mauricio, que recebeu esse nome em referência ao antigo patrão de Madalena.
O bairro, chamado Jardim Pedreira, só oferecia possibilidade de transporte até a Estrada Alvarenga, nas proximidades da Represa. Todos subiam a ladeira caminhando no barro vermelho e chegando lá no alto até a capela de Nossa Senhora Aparecida. Fogão a gás ninguém tinha não, a rotina era buscar madeira na mata próxima com rodilha na cabeça e então cozinhar no fogareiro à lenha bem caseiro construído todo de barro. Os banhos se faziam de bacia e caneca com água retirada do poço, que era bem profundo por sinal.
Na entrada das casas as famílias colocavam uma barra de ferro para tirar o barro, era o limpador de sapatos. Durante os dias congelados Madalena colocava no chão um braseiro feito de galão de vinte litros. Esse piso era feito de tijolos. O artefato então aquecia bem o quarto. No fundo do quintal uma grande bananeira gerava cachos que serviam à família. E tinha grandes sapos escondidos coaxando por entre essas bananeiras!
O casal vizinho também criava seus cinco filhos. Nunca fizeram muro dividindo os terrenos. Isso funciona até hoje. Usavam apenas uma pequena cerca, por onde trocavam verduras, uma colher de sal ou brincadeiras comuns entre as crianças. Os meninos cresceram e quando se encontram atualmente ainda dizem morar “na Vila”. Para eles Santo Amaro sempre foi e sempre será “o Centro” e Anhangabaú fica lá bem longe “na cidade”.
Madalena ganhava muita roupa das patroas e dividia com a vizinhança. O Antonio, como jardineiro, floriu muitas casas santamerenses.
Havia muita vontade de colaborar entre os demais vizinhos, seja cedendo água ou remédios, seja tomando conta de crianças. A escola pública mais próxima chamava-se Manoel Borba Gato. Tinha ensino de qualidade, porém abrigava crianças e jovens apenas até o final do curso primário.
Santo Amaro, como centro onde todos se dirigiam para resolução de problemas, estava sempre movimentado com a sua linda Igreja no alto do morro. Era onde estavam os serviços de cartório, correio, posto de saúde e algum lazer como as procissões ou festas dos cavaleiros.
E que belos vitrais na capela! Diziam que o autor era um alemão da tal Casa Conrado. E essa mesma região que hoje continua como bairro já foi um município, tendo como primeiro prefeito o capitão Manoel José de Moraes em 1935. Ele era tio avô do primeiro presidente civil do país, Prudente de Moraes. Já tinha trem na região e depois chegou o bonde. Francisco Ferreira Lopes, nome de praça, também foi prefeito na década de trinta e Paulo Eiró, o intelectual, era primo de Campos Sales. Lavadeiras usavam o rio da região para suas roupas até 1909 e a Dona Benta Vieira de Morais cedeu terreno para Santa Casa em 1895. Esses detalhes foram contados para Madalena pela sua filha que ganhou um livro, o da escritora Maria Helena Petrillo Berardi intitulado Santo Amaro – Memória e História.
Perguntaram uma vez: se Madalena já ouvira falar de Julio Guerra, um santamarense fervoroso! Ela logo disse: imagino que seja uma personalidade bem importante. E o grande escultor de Santo Amaro passou a fazer parte de sua vida logo que soube ser ele o autor da estátua em homenagem ao outro santamarense, Borba Gato. Afinal é um ponto de referência e todos perguntam nos ônibus: vai descer antes ou depois do Borba Gato?
Madalena e Florentina nunca deixaram de conversar durante essas décadas e parecem duas grandes aventureiras cruzando a cidade de São Paulo em busca de preservar a amizade e criar filhos e netos. Como figuras atuantes do crescimento da metrópole viram toda sua transformação.
Elas se conheceram nas fazendas de café. Florentina, a negra de Minas Gerais trabalhando desde a infância para grandes proprietários de terras e Madalena a filha de espanhóis também buscando sobreviver desde criança. Trabalharam para a mesma família e também colheram café.
Hábito que Madalena nunca esqueceu e sempre que pode pratica, já que seu marido jardineiro, hoje também quase chegando aos oitenta anos, ainda planta as mudas em terreno próximo de casa. Comenta que nos cafezais haviam entremeados pés de feijão e outras raízes, era a policultura. Até hoje sabe fazer com a boca um som de apito com folha do café bem enroladinha.
Sempre ouviu falar que na região repleta de chácaras, nessa zona sul, havia muitos empregos, seja nas indústrias, nos laboratórios ou mesmo nas casas de família. E de fato muitos amigos seus do Jardim Pedreira trabalharam nesses locais.
Durante o crescimento de seus filhos, lá pelo final dos anos sessenta, a família de Madalena utilizava o bonde para circular pelo bairro de Santo Amaro e para chegar ao Centro. E ainda lhe contaram várias vezes essa história de que Santo Amaro era mesmo uma cidade de fato com sede de Prefeitura e o Coreto central. Os nomes de Paulo Eiró, Adolfo Pinheiro, João Dias ou Vereador José Diniz soam fácil em sua mente como que fazendo parte do seu dia a dia.
Os filhos de Madalena também observavam as mudanças da região. Assim que souberam da criação de um Clube da Prefeitura no centro de Santo Amaro iniciaram a peregrinação para freqüentá-lo. Não era nada fácil utilizar as piscinas por volta de mil novecentos e setenta. Havia necessidade de tomar vacinas, tirar chapas dos pulmões, levar fotografias e passar pelo médico. Como não havia possibilidade financeira de usar clínicas particulares, tudo era providenciado pelo Posto de Saúde de Santo Amaro com filas e agendamentos intermináveis. Talvez tenham aproveitado apenas umas três vezes. Porque logo conseguiram emprego e tinham que colaborar com as despesas da casa.
As ruas no bairro do Jardim Pedreira eram de terra e a denominação feita através dos números. E assim se comunicavam: quem conhece a Madalena da Rua 12? A Escola mais próxima para seus filhos ainda era de madeira e localizada bem próxima à Usina Piratininga. Madalena nunca esquece esse nome Piratininga, já lhe contaram que é o mesmo da aldeia que deu origem à Vila que se tornaria a gigante cidade de São Paulo.
No centro de Santo Amaro Madalena fazia suas compras. Lá também sempre utilizava a Santa Casa e o Pronto Socorro, que por muito tempo foi o único na região. Imagine que Madalena constatou ainda hoje não haver nem mesmo qualquer agência bancária no seu querido bairro Jardim Pedreira!
O encanto desse local era percebido quando todos circulavam a pé pelas vielas cumprimentando vizinhos, como o senhor Augusto que benzia as crianças. E os moradores do bairro se juntavam nos domingos subindo até a Igreja de Nossa Senhora Aparecida para rezar pedindo boas mudanças.
Lá pelos anos sessenta um casal de alemães foi morar na Rua 11 da Pedreira. Tão diferentes! Muito sérios e respeitosos. Tiveram vários filhos e quase não conversavam com a vizinhança. O Mauricio, caçula de Madalena, e o Antonio subiam na laje para ver a filha dos alemães tocar piano. Um instrumento raro por aquelas paradas.
Abaixo da Rua 12, havia uma grande chácara de proprietários japoneses onde era possível colher tomates. Lá também vendiam verduras e galinhas vivas.
A região cresceu muito, mas Madalena acha que falta transporte, como o metrô, para toda região de Santo Amaro. A Pedreira transformou-se muito durante os últimos trinta anos, com novas casas, asfalto e também os problemas de toda a cidade. A população mudou hábitos, da lenha para o uso do fogareiro com carvão e depois para o gás. A água agora é encanada e não é necessário mais emprestar luz. Até telefone chegou. Da mata anterior, pouco restou. Favelas apareceram.
Em 1995 Madalena deixou um dos filhos no Jardim Pedreira e se mudou para a Estrada da Varginha com outro deles, Carlos. A sua filha Maria Aparecida, casou-se e reside no bairro do Sapopemba, zona leste. É para lá que Madalena vai a cada duas semanas visitar o bisneto Vinícius.
Hoje ela freqüenta as atividades da Casa de Cultura de Santo Amaro e sabe que ali funcionava um antigo mercado. Também lá lhe disseram que nas noites de segunda-feira tem Samba da Vela. Madalena pratica também um pouco de ginástica para idosos no mesmo antigo Clube da Prefeitura. Já esteve no teatro Paulo Eiró para ver espetáculos e também freqüentou o Sesc para ver exposições.
Circula bastante, mas sua maior caminhada toda quinta-feira é visitar a amiga Florentina no bairro do Tatuapé. Sai cedo, chegando lá se preparam para ir à feira livre saborear pastel. Ela volta da casa da amiga após o almoço. Seu marido, o Antonio jardineiro, levanta diariamente às quatro da manhã e onde consegue espaço segue plantando mudas de árvores nos poucos espaços do bairro. Madalena gosta de recordar os tempos da fazenda, ouvindo canções sertanejas. No ano passado até criou algumas galinhas. E gosta de abanar café com a grande peneira como fazia nos tempos da roça.
Para ela o Terminal Santo Amaro é a grande referência nas suas caminhadas pela metrópole apressada. Comenta constantemente com sua amiga Florentina sobre as rápidas transformações que a cidade de São Paulo passou nesses anos todos. Pondera que aconteceram mudanças para o bem, porque conseguiu criar os filhos, a medicina atual ajuda sua vida e alguns direitos são mais respeitados.
Porém sente tristeza quando asfaltam demais as ruas sem deixar a terra respirar, e derrubam muita mata para construir prédios e mais prédios.
Florentina, que tem esse nome diferente, é uma apaixonada por plantas e concorda que antigamente não se comprava alguns legumes porque nos quintais sempre havia um pézinho deles. Mas comenta também que atualmente outras coisas melhoraram, como o fato de não pagarem transportes e poderem passear.
Madalena adora dançar. É sua paixão. Rodopia no seu próprio ritmo sem se importar com quem está olhando. Adora ouvir canções com seu nome. Florentina é mais velha e sua vida também foi pautada por ricos momentos. As duas caminham pela feira e falam de fatos acontecidos, falam de seus filhos e netos ou de um tempo que dançavam naquele chão de terra levantando poeira. Contam fatos acontecidos por Santo Amaro, pelos Jardins onde trabalharam ou pela zona leste. Lutaram muito, choraram bastante nessa cidade de São Paulo e em suas vidas. Mas de todas as histórias que recordam, sempre tem algum detalhe que provoca as boas risadas de Madalena!

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