Fluem os anos em seu passo inelutável, delindo memórias, criando outras tantas. Conquanto o olvido faça parte da vida, certas pessoas jamais saem de nossa mente. Há pouco estive lendo uma matéria sobre a despoluição dos rios paulistas e veio-me à memória alguém importante para minha família, cujo relato vale a pena ser conhecido, por representar uma parte da história de São Paulo. Trata-se de Dona Maria. Foi a segunda auxiliar de serviços domésticos que minha avó teve. Grávida de oito meses, não podia prescindir de ajuda nos serviços domésticos, conquanto tenha trabalhado até dez dias antes do parto – e ainda criticava as jovens por ficarem de repouso por meses antes do parto.
Esta senhora foi mais do que uma doméstica, carregando a patroa no colo pelas escadas. Posteriormente foi pajem de meu irmão e de meus primos. Certa vez contou-me que, à juventude, ela e a prima auxiliavam a tia, mãe desta, a lavar roupa às margens do Tamanduateí, então rio de águas límpidas e cujos melhores pontos (água mais funda e mais pedras em que bater a roupa após quaradas com sabão concentrado ao sol) eram disputados milímetro por milímetro, pelas lavadeiras, donde a expressão "briga de lavadeiras". Uma tarefa “esfalfante”, o que fazia com que muitas das responsáveis pela limpeza das roupas, a esmagadora maioria de filhas e netas de escravos, preferissem que as filhas abraçassem como profissão a de dançarinas de cabaré, menos exaustiva apesar de não tão dignificante quanto passar os dias com as mãos a ensaboar e bater nas pedras do rio as roupas das ilustres famílias abastadas da sociedade paulistana de antanho.
Quando ela e a prima comunicaram à tia/mãe a decisão de se tornarem lavadeiras ao invés de dançarinas de cabaré, foram veementemente alertadas para a árdua tarefa de deixar as roupas limpas. Ao que responderam "melhor ser lavadeira a polaca negra". Polaca era o termo que se aplicava nos azos às bailarinas de cabaré, quase todas as moças judias do leste europeu (Polônia, Lituânia, Ucrânia). Certo dia, dona Maria me disse que o Tamanduateí era como São Paulo: "Lindo, ainda que sujo". Acho que é isso o mais fascinante em algumas metrópoles: a beleza precisa ser procurada subjacente à feiúra. Dona Maria trabalhou para meu tio por anos, quando se aposentou por idade já avançada: quase nonagenária.
Sobre a expressão "brigas de lavadeiras" vejam o livro "Fotografias antigas", da coleção da Folha de São Paulo, sobre "Profissões". Sobre as "polacas" e como muitas se tornaram insignes senhoras da comunidade judia, "História dos Judeus na Primeira República". Mais uma história, nesta São Paulo de tantas.
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