Acabo de ler no jornal a matéria: Cine Belas Artes vai fechar depois de 68 anos.
O administrador já havia conseguido um novo patrocinador para a sala, após a saída do HSBC e o contrato seria assinado agora em janeiro, mas o dono do imóvel pediu o prédio em dezembro do ano passado. O cinema funcionou na cidade durante 68 anos e agora ali será construída mais uma loja moderna.
Além da tristeza, por presenciar o fim de mais um marco cultural de nossa metrópole paulistana, perpassou por mim um sentimento de desenquadramento. Explico essa última colocação: eu cresci e passei a maior parte de minha vida em uma cidade que está deixando de existir. Tudo no universo é percebido através de signos, já afirmava sabiamente Peirce. A identidade de uma cidade é formada pelos seus habitantes, com hábitos, costumes e comportamentos típicos; por características naturais, como o clima; e pelas obras, que sua população conseguiu erigir ao longo do tempo de existência do lugar.
Pois bem, eu sou paulista e paulistano, tenho características e hábitos típicos daqueles que aqui nasceram e cresceram. No entanto, além da profunda mudança do conteúdo humano de São Paulo, por conta das correntes migratórias, que vêm ocorrendo há anos, os signos não-humanos componentes do quadro contextual da polis, do qual sempre me senti parte está sendo alterado dia após dia, pela força do sistema capitalista selvagem, que despreza valores sócio-históricos e existe em função do acúmulo do capital.
Sinto-me cada vez menos parte de minha própria cidade natal. Talvez alguns de meus contemporâneos, aqueles que não se renderam completamente à subversão de valores imposta pelos detentores do capital e de seus meios de produção compreendam meu sentimento. Algo como uma velha máquina de escrever, que foi deixada em um escritório, onde todo o equipamento e mobiliário mais antigo tenha sido substituído por computadores de última geração. Desenquadramento… sim, essa palavra exprime bem o que sinto hoje, em relação à nova cidade de São Paulo.
Chego ao limite de, algumas vezes, sozinho, refletindo, me perguntar: "se não existe mais o Bom Retiro e sua Rua da Graça, onde eu andava de bicicleta ou passeava com minha mãe e encontrava, debruçada na janela, minha tia Noêmia. Se não existe mais o velho Caetano de Campos (o nome permanece, mas "a Caetano" dos bons tempos acabou), onde fiz o ginásio e o colegial. Se não há o Bar Lanches Telefônica, na Rua Sete de Abril, nem o "seo" Kid Jofre, com sua lojinha de chaves ou o Mappin, o bonde Santana-Lapa, o cine Metro com o Festival Tom e Jerry nas vesperais de domingo, se vão acabar com mais um signo cultural, um dos últimos restantes da cidade da qual um dia fiz parte, por que continuo eu por aqui?
Se esta onde ora vivo é outra cidade e não a minha, estou completo e absolutamente descontextualizado. Então, não deveria eu, também, partir, para não incomodar os novos modelos e não ser incomodado por eles?
Tento encontrar e me aninhar em alguns poucos redutos (entendamos a palavra, aqui, como a entendem os matogrossenses), onde as águas da enchente metamórfica ainda não chegaram. Restam-me poucos locais no centro velho, mesmo estando visivelmente abandonado pelo poder público, algo de minha querida zona norte e um pouquinho do bom e velho Bom Retiro.
Bem, parece, afinal, que resta algo. Talvez esse seja meu atual contexto: faço parte hoje, de um pedacinho da São Paulo de antes, que ainda resta.
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