Você já jogou bolinha de gude? E pião? Se responder que sim, provavelmente é alguém nascido lá pela metade do século passado quando as crianças ainda não sonhavam com os chamados anos dourados, mas sabiam o que era "morrer sapateiro" ou "zuncar o pião", que nada mais era do que fazê-lo girar com grande velocidade, de modo a ouvir o seu zumbido. Isso fazia parte de minhas aventuras no caminho diário para a escola, jornadas povoadas de heróis e assombrações, animais ferozes e vilões.
Ah, eles existiam aqui mesmo, em São Paulo, quando a cidade começava a perder sua garoa. O rumo para a aventura era a centenária Rua Siqueira Bueno, no bairro do Belenzinho, trilha explorada a cada dia no caminho para o Grupo Escolar Queiroz Teles. Ela ainda existe, é claro, mas não é mais a mesma. O asfalto, dezenas de lojas de revenda de automóveis e até um hospital apareceram como invasores de um terreno que tinha seus donos. A molecada.
A rua era calçada com paralelepípedos (ou macacos, como eram chamados), mas boa parte do passeio era de terra, o que tornava possível cavar as quatro casinhas do jogo de bolinhas de gude, dando ensejo à renhidas disputas depois das aulas. Também ficava nessa faixa o Mercado Municipal da Quarta Parada, onde volta e meia entrávamos para roubar azeitonas da banca do "seu" Nicola.
Por ser arborizada, poetas daquela época talvez dissessem ser aquela uma rua perfumada. Eu, a bem dizer, não notava perfume algum, principalmente perto da vacaria dos húngaros, família que se estabelecera numa chácara na esquina da Tobias Barreto, criando vacas e vendendo leite devidamente "batizado". O que se sentia ali por perto, evidentemente não era nenhum perfume, mas um poeta bem que é capaz de achar que esterco de vaca é uma fragrância.
De bonito, mesmo, só as roupas daqueles imigrantes que faziam questão de preservar sua identidade cultural, ainda que mesclada com um pouco da malandragem brasileira. Ou teria vindo de terras magiares o costume de botar água no leite? A Rua Siqueira era uma subidona e lá no topo, antes da virada da rua da escola, havia uma chácara quase abandonada, com um velho casarão. Na cabeça da meninada o que valia mesmo era a imaginação e esta povoava com almas e fantasmas aquela antiga sede de fazenda, fincada de forma ainda imponente no meio de uma selva impenetrável.
Nem mesmo o valentão da turma algum dia teve coragem de desvendar esse mistério. Ainda bem, pois teria acabado com o encanto. As goiabas sim, eram reais e tentadoras. O velho caseiro que morava nos fundos desse terreno vendia-as para obter algum sustento. Nós, crianças, queríamos mesmo era provar de seu gosto e o fazíamos através de incursões furtivas, mas não tão profundas, naquele terreno proibido. Não tinha graça pedir ou comprá-las, perderia o espírito de aventura negociar as uvas de dezembro ou os caquis de março. O gosto da fruta roubada era mais saboroso.
Da escola lembro-me das inesquecíveis aulas com dona Inês, gorda e bondosa como deveriam ser todas as professoras. E foi num desses dias, a caminho do Grupo Escolar, que encontrei colegas descendo a rua, alvoroçados dizendo: – "Hoje não tem aula. O Getúlio morreu". Isso significava para nós, moleques, que o jogo de bolinhas de gude começaria mais cedo e morreria "sapateiro" quem não corresse as quatro casinhas, ida e volta.
Fui para casa tirar o uniforme e encontrei minha mãe junto ao velho rádio Philco, ouvindo notícias do Catete. Na verdade, não era assunto que me interessasse, embora visse o retrato do "Velho", como meu pai o chamava, por toda parte. Na vendinha do "seu" Leon, na barbearia, na padaria e em muitos outros lugares. Também não dei importância às mulheres nos portões, em rodinhas, algumas disfarçando uma lágrima.
Importante era pegar a caixinha de papelão com as esferas de vidro prontas para o desafio. Bons tempos, grandes combates, mas as goiabeiras foram abatidas e o casarão, posto no chão. O mercado deu lugar a um banco e a chácara, ao hospital. Não sobrou nem um metro quadrado de terra para se escavar os quatro buracos do jogo de bolinha de gude.
Foram-se também os húngaros e suas vaquinhas, vencidos pelo progresso e pelas lojas de automóveis usados. Goiabas, hoje em dia, só nas feiras e supermercados. Também não existem mais mulheres que chorem por causa de seu presidente. Mas aí já é outra história.
E-mail do autor: [email protected]