Danos morais

Vou narrar aqui meu dia de cão em São Paulo.

Em 1964, eu trabalhava na Casa José Silva da Rua São Bento, 51, e morava na Freguesia do Ó. Para chegar ao emprego eu pegava o ônibus 68 que vinha da Itaberaba e que fazia ponto final ao lado da Igreja Paissandu, em frente ao Cine Art Palácio na Avenida São João.

Esse ônibus, antes de chegar ao Paissandu, circulava pelo bairro do Limão, parte da Casa Verde, atravessava a ponte sobre o Rio Tietê e, depois de passar pelo pontilhão do Bom Retiro, pegava o finzinho da Avenida Rio Branco, depois da Duque de Caxias e Avenida Ipiranga chegava ao Paissandu, sua parada final.

Naquela época, assim como hoje em dia, os ônibus circulavam lotados, com gente pendurada nas portas pra fora dos veículos.

Era o ônibus da 7h10min e que chegava ao centro perto de 8h00. Eu entrava no serviço às 8h30min e caminhava até a Rua São Bento, subindo a Conselheiro Crispiniano, passando pela Praça Ramos, o velho Mappin, o prédio onde funcionava a antiga Light, passava pelo Viaduto do Chá, em frente o ex-Edifício Matarazzo, hoje sede da Prefeitura Municipal, atravessava a Libero Badaró, passava pelo Othon Palace Hotel, que está atualmente em vias de encerrar suas atividades, por operar no vermelho e reunir imensas dividas de IPTU e ISS com a Prefeitura.

Por fim chegava ao meu emprego na velha Casa José Silva, cuja entrada dos funcionários era pela Libero Badaró, quase colado com o citado e famoso hotel de São Paulo.

Nesse dia eu viajava em pé, todo apertado, pois havia dado o meu lugar sentado, não por educação, mas com certeza por sedução, para uma mulher muito bonita. Então fiquei ao lado de uma senhora do meu lado direito e de um mulato (ou um afro descendente na linguagem atual) a minha esquerda.

A certa altura, esse afro descendente perguntou-me a hora, e falamos mais algumas coisinhas que jamais cheguei a anotar ou lembrar, pois o mesmo desceu no meio do caminho, na Avenida Tomas Edson, no Limão.

Ao chegar perto da Ponte da Casa Verde, a mulher começou a dizer que haviam roubado a carteira de dinheiro dela, que estava dentro de sua bolsa de mão. Uns falam de cá, outros dão palpites de lá, e acabaram achando que só poderia ter sido eu o batedor da carteira em pauta, já que era o único suspeito ao lado da mulher, pois que, do outro lado, havia uma senhora e um senhor muito distinto. E é claro que uma senhora e um senhor muito distinto jamais roubariam uma carteira (nessa época, o juiz Nicolau e aquela advogada fraudadora do INSS ainda eram jovens como eu).

Pedi para que fizessem uma revista, duas pessoas mais o cobrador me revistaram (maior vexame), não acharam nada, mas não adiantou. Alegaram que todo ladrão de carteiras tem um comparsa para se livrar do delito, e como eu havia conversado com aquele afro descendente, eu fui acusado de ladrão e ele, coitado, o qual eu não sabia nem o nome, de comparsa.

Resultado. De comum acordo com o motorista, fomos todos parar em uma delegacia do Bom Retiro às 8h00 horas da manhã.

Entramos, a mulher já entrou dizendo que eu havia roubado a carteira dela como se ela tivesse me apanhado com a mão em sua bolsa (que situação constrangedora). Sinto-me mal ao narrar esse fato agora, depois de tantos anos (tem coisa que a gente não esquece nunca).

O delegado preferiu nos ouvir em separado, ouviu a mulher depois me ouviu pacientemente, fez perguntas e depois ouviu duas "testemunhas" e então colocou-nos todos juntos e falou para a mulher:

– Olha minha senhora! Eu acho que o rapaz não é ladrão, ele tem carteira assinada e é funcionário antigo da Casa José Silva. A senhora tem certeza de que foi roubada mesmo? Não poderia a senhora ter esquecido essa sua carteira em casa?

E a mulher:

– Não, eu tenho certeza que eu saí com minha carteira, o senhor esta querendo dar razão para o ladrão e está duvidando de mim, etc.

O delegado, já meio sem paciência, falou se a mesma não queria telefonar para casa para confirmar com alguém se a carteira não havia ficado esquecida por lá. A mulher, mesmo protestando que tinha certeza de ter saído com a carteira, resolveu telefonar mesmo não concordando. E então, na frente do delegado, na minha frente, mais dois investigadores, dois passageiros e o cobrador, a mulher pegou o telefone e ligou para casa.

E eu, suando por todos os poros, ouvi aquela senhora dizendo: o quê? Está em cima da TV, é? Não me diga, eu estou aqui na delegacia achando que fui roubada, e acusando um jovem de ladrão etc. e tal.

Nas últimas duas horas foi a melhor coisa que ouvi em minha vida, senti que estava me afogando e alguém estendeu a mão para me salvar. Se antes nervoso eu não conseguia articular as palavras direito, elas agora desapareceram na emoção, pois até aquela idade (21 anos) eu jamais havia passado por situação igual.

E foi então que o delegado, que há muito já havia perdido a paciência com aquela mulher faladeira e acusadora, pediu licença, me chamou de lado e sugeriu:

– Olha, meu jovem, você está com a faca e o queijo na mão, você pode abrir um processo contra essa mulher por danos morais e prejuízos, já que você está faltando ao seu emprego. Se você quiser, eu faço um BO agora mesmo, e isso, meu jovem, pode te render perto de CR$.80.000,00 (perto de oitenta mil reais hoje).

Estava já pensando em o que fazer com a grana (comprar um carro e ficar livre de situações como aquela, me casar, já que eu estava noivo, fazer uma linda festa e ir passar uma lua-de-mel maravilhosa em algum hotel do Rio).

Nisso, o barulhento telefone do delegado tocou por duas vezes, e no segundo toque o delegado atendeu e eu, desgraçadamente, acordei atrasado para ir para o meu emprego na Casa José Silva.

Mas eu juro! Se eu não tivesse acordado, teria com certeza processado aquela mulher faladeira, caluniadora e preconceituosa.

É isso mesmo, minha gente, foi um triste sonho.

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