Cole Latino, a via do progresso

A rua era estreita, com uma faixa de paralelepípedos de seis ou sete metros. As laterais em terra batida terminavam nas calçadas sem meio-fio construídas pelos proprietários das raras casas existentes, e, na maior parte da rua, nas valetas e buracos provocados pela forte enxurrada no período chuvoso. Todo o tráfego da Lapa para Pinheiros, Jaguaré e Osasco passava obrigatoriamente pela Cole Latino, cujo movimento perdurava durante a noite e madrugada, aliás, demonstração viva da pujança econômica que São Paulo experimentava nos anos imediatamente posteriores ao final da Segunda Guerra Mundial.

Junto com os velhos ônibus G.M.C. da Cia. Municipal e Transportes Coletivos, CMTC, que ligavam a Lapa ao bairro de Presidente Altino, circulavam centenas de caminhões transportando riquezas. Os portos de areia das margens dos rios Pinheiros e Tietê escoavam sua produção pela Cole Latino, que ficava molhada com a água que vertia das cargas. A família Gollo, que residia numa bela casa no final da Rua Tito, tinha uma frota de caminhões para o transporte exclusivo de areia, quase todos da marca Studebacker, cada um mais lindo que o outro, tanto que Sílvio, um dos filhos mais novos do senhor Gollo, não tinha o menor receio em dar suas voltas aos domingos com o mais novo Studebacker da família, que obviamente era caprichosamente lavado no sábado á tarde.

Pela Cole Latino era escoado também o pinho que vinha do Paraná pela Estrada de Ferro Sorocabana e descarregado no páteo do Instituto Nacional do Pinho no Jaguaré, de onde era distribuído para serrarias e atacadistas de madeiras. Centenas de milhares de araucárias transformadas em tábuas, vigas, caibros e ripas desceram em caminhões pala famosa via, aliás, os desastres mais pavorosos que aconteceram na Cole Latino envolviam carregamentos de madeira, sempre em caminhões velhos e sem manutenção.

A Sanbra e o Matarazzo eram responsáveis pelo tráfego de centenas de caminhões que diariamente transportavam fardos de algodão para as tecelagens e fiações da zona leste, ou sementes desse vegetal para a fabricação do óleo "Sol Levante", na fábrica da Água Branca, defronte ao estádio do Palmeiras.

Às 18 horas a Cole Latino acalmava, e somente os ônibus e os poucos automóveis dos moradores da City Lapa movimentavam-na. Todavia, por volta das 22 horas recomeçava sua rotina com os caminhões baús, próprios para o transporte de carne, que desciam sempre em velocidade rumo ao Tendal Único de Carnes na Rua Guaycurus, onde era efetuada a inspeção sanitária pela Prefeitura Municipal. A carne era produzida em Carapicuíba, onde se localizava o matadouro municipal, e a matança, não sei por qual razão, era executada no período noturno. Vez ou outra, algum desses caminhões parava no bar do Oswaldo, que se situava quase na esquina da Rua Marapoama, e os ajudantes desciam para tomar café parecendo seres de outros planetas, com capa e capuz todo ensanguentado e exalando horrível odor, enquanto que do baú escorria sangue fresco, o que era a alegria dos vira-latas da redondeza.

A rotina da Cole Latino não terminava nem com a aproximação da madrugada, pois quando caía o movimento dos caminhões de carne começava o dos feirantes, com seus velhos Fords e Chevrolets, além das muitas carroças cujas rodas cobertas pelo aro de ferro e as ferraduras dos cavalos provocavam o ruído próprio, até que com o raiar do dia já retornavam os caminhões de areia, madeira, os amarelinhos do Matarazzo etc.

Esta é a imagem viva que guardo da Cole Latino, rua que marcou minha infância e juventude numa época em que São Paulo ostentava, orgulhosamente, o título de "Cidade que mais cresce no mundo", e grande parte deste progresso passou pela Cole Latino, que atualmente é a Rua Pio XI.

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