Oh inolvidável dia! Nunca me esqueci daquele mês de julho de 1961 em que o destino colocou você diante de mim naquele espaço da Praça Dom José Gaspar, próximo à Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro da cidade. Meu espírito engolfa-se inteiramente naquela menina moça a minha frente. Naquele fim de tarde e começo de noite ouço vários rumores que percorrem a copa das árvores; os arbustos em volta eriça-se, estremecem; as folhas grandes ondulam com lento tremor, dir-se-ia que os pássaros em reboliço procuram um pequeno espaço nos galhos da copa das árvores para encontrar um lugar seguro para passar a noite. Nessa noite falamos de tudo um pouco, adequando o nosso conhecimento, aquele primeiro encontro fortuito na esquina da Avenida São Luiz, junto ao muro da Biblioteca Circulante. <br><br>Depois daquele momento, transcorreu uma hora e os pássaros deixaram de cantar e o bosquezinho ao redor da praça ficou inanimado. Passou uma vaga onda de frio e ela aconchegou-se contra mim; seu corpo estava hirto e trêmulo de frio, apesar do grosso manteaux preto de gola de astrakan que ela usava. Naquele momento, sentindo-a perto de mim, nada podia perturbar minha felicidade. Eram perdidas as imagens daquele instante. Ao nos despedirmos, tendo suas mãos entre as minhas, perguntei com ansiosa timidez: – Até amanhã? – Não, amanhã, não. – disse-me olhando fixamente nos olhos. Senti-me tomado por uma ansiedade tão grande que nem me atrevi a investigar o motivo; mas depois, disse-me ela rindo: – Amanhã terei o passeio combinado com as minhas amigas da União Cultural Brasil Estados Unidos – Todavia, depois de amanhã, tencionava surpreendê-lo com um convite para um jantar na cantina 1060 no Brás para comemorar o casamento de um amigo meu. <br><br>Naquele momento o meu coração retorna ao seu ritmo normal. Aquelas poucas palavras bastaram para descarregar o espírito de tão grande peso. Adriana afasta-se despedindo-se com uma leve inclinação da cabeça. Nas poucas vezes em que falo, ela ouve-me atentamente, sem manifestar a menor distração. Outra moça vem de dentro do salão circulante da Biblioteca Municipal aproxima-se para me cumprimentar e eu a reconheço de imediato. Era a Maria do Carmo a bibliotecária chefe da seção de empréstimos dos livros. Sento-me em um dos bancos de madeira e encosto de ferro disposto no meio da alameda e em frente das duas moças; levanto a aba do chapéu com a mão esquerda e com um gesto mecânico tiro de dentro do bolso interno do paletó a carteira de cigarros e acendo um e ponho-me a tragar a fumaça com fúria. <br><br>A elegância de Adriana cativa-me e até penso em propor-lhe pagar um café em uma lanchonete debaixo do Edifício Vicentina, na Rua Bráulio Gomes. Aquela moça, a filha da dona Etelvina da seção de artes, era muito bonita. Sentamo-nos juntos no banco e seu joelho toca no meu, porém, muito mais do que esse contato, conforta-me o olhar que de tempos em tempos me procura e envolve. Em um instante, indenizo-me com juros as vicissitudes daquele momento no qual a vejo voltar-me subitamente as costas e pôs-se a tagarelar com a Maria do Carmo. Durante um imenso quarto de hora, não existo para ela e o injusto abandono levou-me a pensar que aquela aparente indiferença fosse proposital. <br><br>Depois dessa atitude de Adriana resolvi não desesperar. Talvez tudo tivesse origem na minha incapacidade de compreender e aceitar aquela atitude de Adriana. Que visões perseguem seus olhos castanhos tão distantes? Que quimeras se erguem na sua cabeça? – Vá a minha casa! Moro na Vila Nova Conceição! – Te espero no sábado a noite, antes, porém, me telefone.- disse-me. E se despediu de mim e da Maria do Carmo. Em sua casa, levou-me até a sala principal, de cujo centro havia uma mesa e as cadeiras alinhadas a sua volta e junto à parede havia um piano que indicava que ela gostava de tocar músicas.
Saímos da sala e em um pequeno corredor, com voz sumida, interrogo-a. – Esqueceu-me de todo, Adriana? – Não viu que tive que fazer nestes últimos dias? – Como queria que pudesse vê-lo? Não pude conter-me e só vieram à boca palavras inoportunas. – Não discuto se pode ou não pode vir – Esperei-te na Rua Afonso Brás com a Diogo Jacome até dez horas da noite de sábado e você me ignorou, não veio ao encontro. Se eu pudesse ler a sua cabeça, de cujos mistérios só agora me apercebo! – Mas seu lhe digo que não o esqueci – respondeu-me toda ruborizada, apegando-se ao meu braço para me convencer de que não havia nada de extraordinário na sua atitude de sábado. – Segunda-feira começo a trabalhar em um banco na Rua Boa Vista. – O pai andou ensinando-me juros e porcentagem! – Durante a semana prestei uma pequena prova de matemática e algumas arguições sobre o sistema financeiro bancário e fui aprovada – disse. No começo do mês seguinte vamos mudar de casa. – Iremos morar próximo do Colégio Adventista no quilometro 23 da Estrada de Itapecerica.<br><br>Agora, já fora da casa, vejo Adriana afastando as cortinas para me ver indo embora e observo que no seu rosto há uma sombra pensativa; toda a minha lassidão desaparece e afasto-me a passos rápidos passando na pinguela velha, desgastada, sob a ponte do córrego Uberaba e entro na Rua Natividade e vou até a Avenida Santo Amaro para pegar o ônibus para a cidade. Se viera até a janela para me ver não estava tudo claro? E era tanta a alegria que até esqueci que tinha perdido a minha caderneta de trabalho com algumas anotações. Refiz o caminho de volta novamente para ver se ela tinha caído na rua; nada! Porém, me surpreendi ao deparar com Adriana no quartinho de despejo com uma vela acessa fazendo uma oração. – O que isso? – perguntei. – Nada! – apenas fiz uma promessa para que você retornasse aqui, agora. – O que aconteceu de ter voltado? – perguntou ela – Acho que perdi no caminho a minha caderneta de trabalho! – Sabe, mas não a achei! – Não importa, tiro a segunda via. <br><br>Eis aqui novamente o inverno. A noite alastrou-se densa e a umidade gelada entorpeceu os meus movimentos; apesar de não chover senti o rosto molhado e hirto de frio. Noite clara, lua cheia ilumina a copa das árvores ao redor das chácaras no entorno do morro do "S" no Capão Redondo e do Campo Limpo. Era ali que ela morava agora. A casa era simples, a fachada pintada de marrom claro deixava transparecer um tom patético de sobriedade. Ali, porém, era muito distante da cidade; tinha alguma dificuldade de locomoção porque dependia de um único e exclusivo ônibus que fazia aquela região, o ponto final era na Praça Salvador Correia.<br><br>Olhei para a modesta sala de visitas. O piano estava ali. Pouco depois Adriana vem colocar-se junto ao piano, com o rosto mudado, como se sobre ele estivesse estendido um véu de tristeza; tocava uma música da época do tema do filme Suplicio de Uma Saudade; enquanto a música enchia melancolicamente a sala. – Como também, gostaria de tocar piano! – Disse-lhe. Depois, tudo acabou. Já são passados cinquenta longos anos de ausência e ontem recebi com espanto e curiosidade com dez palavras apenas em uma única frase: "Me fez voltar a minha infância quantas recordações, quantas saudades"… <br><br><br>E-mail: [email protected]