Cenas paulistanas (Parte I)

Cena 1:

Trabalhamos até as 23h na loja Car Center do Jumbo Aeroporto, isso lá pelo final do ano de 1972. Meu amigo Beto tinha um Corcel 69 branco de quatro portas e sempre me dava carona até em casa, no Sumaré. Saímos e pegamos a Washington Luís e descemos em direção ao Centro. Não é que em frente ao Parque do Ibirapuera ele pega uma "quebrada" e entra pela Manoel de Nóbrega em direção ao temido Quartel da PE? Em frente ao mesmo, estaciona do outro lado da rua e, já quatro ou seis soldados da PE, com metralhadoras nas mãos vão se aproximando com cautela, lembrem-se que a época era final de 1972 e passava das 23h, então dá para imaginar o terror de ser fuzilado sem aviso que se apossou de mim, que mudo fitava meu amigo Beto que encarava os soldados com uma expressão irônica na face.

De repente, quando os soldados já ameaçavam apontar as armas, meu amigo Beto, se debruçando sobre mim, abre o vidro da janela e grita: "E aí bando de bonecas!". Pensei: estamos mortos sem dúvida, agora é só rezar para que os tiros acabem logo com a gente sem muito sofrimento. Quando um dos soldados olha para ele mais atento e abrindo uma gargalhada grita: “Ah Betão vai se ferrar…” e todos os outros correm para nosso carro e o Beto já saindo vai abraçando todos eles e rindo muito.

Depois me explicou, ele tinha "servido" naquele quartel e dado baixa há poucos meses, onde tinha muitos amigos. Fiquei olhando para ele, um cara grande, forte, cara de italiano mafioso, sempre de paletó escuro, pensei: onde fui me meter andando com esse cara?

Cena 2:

Estávamos na beira da Represa Guarapiranga: eu, meu grande amigo Paulo e seu pai, saudoso Seu Lano, vendo os barcos e lanchas e ao fundo um pequeno hidroavião que decolava levando pessoas para um voo panorâmico e depois pousava na represa. Isso foi lá pelo final de 1968 e eu pensava: só maluco para voar em um avião que pousa na água, risco duplo, o avião cair e o cara se não morrer na queda, morre afogado. Foi quando o pai do Paulo olha para nós e diz que o piloto daquele avião era um alemão que tinha lutado na Segunda Guerra e isso já atiçou minha fantasia, pois desde muito cedo estudo muito sobre esse tema que me fascina, mas naquele momento essa informação apenas ficou nisso, um mero comentário.

Muito anos depois descobri que aquele piloto era o famoso aviador letoniano Herbert Cukors, detentor de vários recordes de aviação na Europa, inclusive chamado de o "Lindbergh da Letônia", por ter sido o primeiro a ter realizado longos voos pela primeira vez. O trágico é que ele foi acusado pelo Mossad, serviço secreto de Israel, de ter sido o carrasco do gueto de Riga na Segunda Guerra e responsável pela morte de 30.000 judeus naquela cidade lituana.

Cukors foi perseguido e assassinado por agentes israelenses em Montevidéu, mas sua culpa jamais pode ser historicamente provada e sua família até hoje busca reparação de sua memória. Viveu muitos anos no Brasil e seu filho Gunnars continuou sua tradição de aviador. No blog http://the-rioblog.blogspot.com.br/2011/08/historia-de-herbert-cukurs-de-pioneiro.html existe tudo sobre ele e sua vida entre nós. E pensar que naquela tarde ensolarada eu quase tive a oportunidade de voar com ele.

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