Na prateleira do supermercado, os cadernos se exibiam silenciosamente. Empilhados em ordem nas prateleiras, ainda não eram de todas as cores, como os atuais com desenhos juvenis, com muita graça. Capa dura, capa mais simples, caderno universitário, de desenho, quadriculado. Todos à disposição de um público encantador.
Sem dúvida, encantador e possivelmente público encantado. Público que ali iria depositar o resultado de algum esforço: para muitos, um esforço homérico, hercúleo… O esforço da aprendizagem, do tentar compreender o universo adulto com as suas complexidades e incertezas.
Esforço do lidar com a matemática, ah, essa ciência que muito me tirou o sono e o do meu filho! Outros tantos iriam ali escrever lindos poemas de amor, desenhar sonhos coloridos como em uma tarde de verão abençoado por um sorvete de morango. Ou de creme? Não importa. Sorvete em bocas infantis é uma bênção inigualável. Tem o sabor das doces criaturas celestiais que acalentam pacientemente os filhos de Deus que por aqui transitam.
A geografia ficaria se espreguiçando através dos mapas do mundo inteiro. Quantas vezes abri o atlas e fiquei admirando os espaços imaginários! Como seriam os lugares? Existiriam pessoas felizes ali? Felizes como eu me sentia então? Como deve ser extasiante conhecer o mundo, os caminhantes e suas solidões!
Mas no caderno existiria aquele que também haveria de estudar História. História da vida, das construções, dos desejos e das desilusões. História de qualquer parte do mundo, ela vai doer, porque muito dela é o desenrolar da vida de uns tantos infelizes. Uns inventaram a tirania, outros, a bomba atômica. Outros usaram a engenharia para a construção dos campos de extermínio de Treblinka, Bergen-Belsen, Birkenau. Mas essa juventude iria e vai também usar as folhas do caderno para escrever sobre Gandhi, sobre os sonhos da democracia, de uma sociedade mais justa.
Outros escreverão sobre Dom Paulo Evaristo e as suas lutas pela construção de um mundo encharcado dos pensamentos deixados por Cristo. Escreverão sobre movimentos sociais, movimentos culturais, sobre a anistia para os prisioneiros políticos. O palco estará aberto para todos os espaços, com cores, amores, dissabores e horrores que a humanidade sempre fez questão de produzir.
Eu comprava meus cadernos logo pelo tempo do Natal. Época que ninguém estaria preocupado com isso. Ao contrário, era época das delícias das férias, das festas com seus presentes em embalagens coloridas. Quem sabe uma chegada a Santos ou São Vicente? Mar, doce mar, com os jogos, os castelinhos na areia e a raspadinha de groselha.
Mas eu aproveitava os preços baixos e ia encapando os meus cadernos com tamanho carinho e zelo que parecia o objeto mais esperado, mais especialmente elaborado pela mente humana. Meus cadernos! Quando consegui comprar o primeiro universitário, voltei orgulhosa das Lojas Americanas. Foi o meu companheiro mais fiel para as aulas de Literatura. Quanta paixão ao conhecer um pouco de Fernando Pessoa! Ao descobrir a pedra no caminho do Drummond, o lirismo de Vinícius de Moraes, o sentimentalismo da Cecília Meirelles!
Ferramenta de construção de uma vida inteira, guardo ainda o meu caderno de gramática da oitava série quando fui aluna do professor Antônio Pitorri, meu queridíssimo e brincalhão professor. Páginas amareladas, regras que não existem mais. Escrito no mais rigoroso capricho, sem rascunho e sem rasuras, com os títulos grifados em vermelho. Capa simples, quadriculada de cor alaranjada com creme. Que bênção ter o professor pronto para a partilha do conhecimento, para as análises sintáticas, a descoberta dos verbos em todos os seus tempos e a literatura do tempo do Romantismo. Anos mais tarde, eu morria de felicidade e de orgulho pelo fato de o meu pai ter comprado um apartamento na Rua Castro Alves e eu ter lecionado no Colégio Álvares de Azevedo.
Foi ali, nos meus cadernos, que desenhei meu futuro, em uma São Paulo com muitas ruas de paralelepípedo, ao som de Jovem Guarda, do Tropicalismo, da Bossa Nova e da música de Protesto. Tempos de economia no comprar os doces Confiança e observar com olhar de candura o caminhãozinho de Dozes Neuza. Tempos de abrir a garrafa de Pepsi e procurar a tampinha premiada. Época em que sempre estávamos errados e tínhamos que obedecer. Tempos politicamente sombrios, nefastos, mas com a força de uma juventude que desejava sonhar, construir identidade e se fazer representar.
Foi pelos cadernos que descobri que cultura é resistência e não há quem nos possa roubá-los
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