Se depender de mim, Matilde Macedo Soares, escola onde estudei o primário e ginásio nos 70, tem muita história pra contar. E falando nesta escola, lá pelos idos de 1974, entre os governos Médici e Geisel, famosos pelo seu pulso militar, ocorreu um fato que só vim a ter completo entendimento quando adulta.
Daquela época, lembro-me de que cantávamos o Hino Nacional no pátio e hasteávamos a bandeira sempre antes de entrarmos para sala de aula. Vez ou outra entoávamos, com fervor, a música “Eu Te Amo Meu Brasil”, daquela dupla Don e Ravel, conhecida atualmente como "música da ditadura".
A frase título deste texto era uma ladainha conhecida, assim como "Pra frente Brasil". A disciplina de Educação Moral e Cívica fazia parte do currículo escolar da época, em que o assunto principal, como o próprio nome já diz, era o civismo e tudo relacionado ao lado social.
Dito isto, volto no tempo e vejo a minha querida professora Edeli, dando sua aula de deveres cívicos e patrióticos como de costume, quando nesta mesma imagem aparecem outros personagens. De tempos em tempos, nós recebíamos visitas de senhores que se instalavam ao fundo da classe, assistindo a aula e tomando notas. Quando isto acontecia, nossa professora só falava num tom sério e nervoso.
“Hoje temos mais um “estagiário” na classe; por favor, respeitem e prestem atenção na aula”.
Naqueles dias, as aulas ficavam um pouco mais monótonas, num tom mais sério do que o normal, o que tornava os minutos intermináveis. O tal sisudo lá do fundo parecia ter alguma coisa a ver com aquela mudança de tom da aula. Nós, alunos da classe, sempre curiosos, de vez em quando dávamos uma olhadinha pra trás, e éramos prontamente repreendidos pela nossa mestra.
No final da aula, os distintos senhores saíam, assim como entravam, sem dizer uma palavra e sem olhar para os lados. Este fato aconteceu umas duas vezes durante aquele ano. E adivinha?! Sempre nas aulas de Educação Moral e Cívica.
Na realidade, naquele momento, nem pensei muito no assunto, pois ocupava a minha cabecinha com o cotidiano de ir pra escola, brincar e fazer lição. A minha inocência não me deixou perceber que aquele fato podia ter uma conotação mais séria do que podia parecer. Em casa, ninguém falava em ditadura ou governo militar. Só o que eu sabia é que meus pais tinham que labutar pelo pão nosso de cada dia, o que não era fácil. A realidade do dia-a-dia era nossa lição de economia e política do país.
Muito mais tarde, já adulta, trabalhando na Secretaria de Estado da Cultura, tive oportunidade de ver a revitalização do antigo prédio do Dops, onde o terror aconteceu para muitos, transformado num lindo espaço cultural. Cheguei a visitar as celas, onde inocentes viveram agruras nas mãos dos militares, o que ainda me causa arrepios só de lembrar.
Lógico que, tomando maior conhecimento da ditadura militar, não consegui deixar de conectar os visitantes das minhas aulas de E.M.C. aos "censores" e dedos duros do governo, fiscalizando se o currículo escolar estava dentro do padrão exigido. Contudo, não posso afirmar nada. A pergunta fica no ar: quem eram aqueles sisudos que tomavam nota sentados no fundo da minha classe nas aulas de E.M.C.?
Entre tantos momentos memoráveis na minha infância no Bairro do Limão e na escola em que estudei, escolhi escrever mais este relato, mostrando talvez o outro lado da mesma moeda. Mas lembranças são sempre lembranças, e recordar faz parte de um saudável processo catártico. Entretanto, apesar deste momento difícil para o país, para mim, a música da ditadura só me traz boas lembranças da minha infância lá no Matilde.
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