Papai adorava ler Karl Marx e mamãe encantava-se com a leitura de Allan Kardec. Eu, aos oito anos de idade, sem entender absolutamente nada do conteúdo daqueles "estranhos" livros, relia minha cartilha escolar do curso primário, chamada Caminho Suave e alguns gibis do Zorro e do Fantasma que eram sutilmente escondidos entre as páginas da cartilha para não serem vistos por mamãe e evitar uma boa surra de vara de marmelo.
Na véspera do Natal de 1963 papai saiu de casa, no pacato bairro Parada Inglesa, para participar de uma importante reunião no Sindicato de Brinquedos e Instrumentos Musicais, que ficava na Av. Celso Garcia, no Brás e prometeu à mamãe que voltaria para a confraternização natalina.
No início da noite mamãe começou a fazer um bolo de morango e quando terminou, colocou o bolo cuidadosamente sobre a mesa e disse enfaticamente que só comeríamos o bolo quando papai chegasse.
Desolado, sentei-me diante do bolo e com as mãos no queixo e os cotovelos sobre a mesa, comecei a sussurrar uma oração para Jesus pedindo o retorno de papai o mais breve possível.
O repetitivo "tic-tac" do relógio cuco que ficava na cozinha e alguns estampidos de fogos que iluminavam o céu, anunciavam a proximidade do dia do nascimento de Jesus e deixava-me inquieto e entre uma olhada de soslaio para mamãe e outra para a porta da cozinha, para ver se papai estava chegando, colocava o dedo indicador no bolo e levava-o rapidamente até a boca.
Faltando alguns minutos para meia-noite, papai chegou com um embrulho embaixo do braço e eu iluminei toda a cozinha com um inefável sorriso de felicidade. Iria comer o bolo!
Papai deu-me o embrulho acompanhado de um carinhoso beijo na testa e quando eu o abri, meus olhos marejaram diante de uma linda bola de capotão número cinco com um delicioso cheiro de couro cru. Retribuí o presente com um forte abraço e vários beijos no seu rosto.
Posicionamo-nos ao redor da mesa e demos as mãos e mamãe iniciou uma "interminável" prece agradecendo a tudo e a todos e quando terminou, abraçamo-nos desejando Feliz Natal.
O bolo de morango com vários furinhos produzidos pelos meus ágeis dedinhos finalmente foi cortado e servido a todos.
Adormeci em um sofá velho, na varanda, todo lambuzado de bolo, abraçado a bola de capotão, escutando o suave "tic-tac" do relógio cuco e o barulho de alguns pingos de chuva que começara a cair… Era Natal!
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