"Boa Noite"

Os “vilamarienses” dos anos quarenta certamente hão de lembrar-se dele e também de sua mulher. Estranho casal aquele, comovente e cheio de graça. Deviam andar adiantados na casa dos sessenta, mas de seus rostos enrugados emanava um halo de infantil ingenuidade e pureza. Ele não era alto e ela menos ainda. Eram magros. Ele tinha sempre na cabeça um chapéu de couro, desses que os nordestinos costumam usar. Ela usava saias compridas e na cabeça, às vezes, um pano, a guisa de lenço. De poucos detalhes físicos podemos nos lembrar, mas isso nos parece agora irrelevante. O que ficou foi a candura e a genuína alegria que neles transparecia, sem nenhum esforço, espontaneamente, naturalmente<br><br>Era comum vê-los perambulando pelas ruas poeirentas do bairro: da Praça Santo Eduardo à Praça Cosmorama; pela Avenida Alberto Byíngton em direção à Praça da Alegria, ou por outro caminho qualquer. Em suas andanças, ele a conduzia gentilmente pelo braço, como se o habitual passeio fosse um cerimonial. Com naturalidade, fazendo o gesto de quem vai tirar o chapéu, a cada pessoa que encontrava, não deixava de cumprimentar com o seu característico e cordial "Boa Noite", mesmo que, àquela hora, no céu ardesse o mais estupendo sol. Era "Boa Noite" pela manhã, "Boa Noite" pela tarde e até mesmo pela noite. Ele era chamado por todos "Boa Noite", é óbvio. Ela era simplesmente a mulher do "Boa Noite', o que também é obvio, mas, por ser nordestina, alguns também a chamavam "Maria Bonita".<br><br>Em cada esquina, praça ou qualquer outro local onde houvesse gente disposta a vê-los e ouvi-los, paravam para uma exibição. Eram sempre acompanhados, em longos trajetos, por um bando de crianças, um séqüito de fiéis e entusiásticos admiradores, o melhor de sua platéia. Ele trazia sempre consigo uma espécie de concertina ou pequena sanfona que, invariavelmente, tocava sem parar. Mas, que música! Às vezes o som que se ouvia parecia-se com alguma melodia conhecida, porém, mais freqüentemente, o surrado instrumento emitia sons desarmoniosos e teimosamente fanhosos. Estimulado pela molecada, o simplório virtuose comprimia alegremente as teclas do velho fole. No auge do espetáculo ele, sempre sorrindo, balançando o corpo, ensaiava passos de dança, no descompasso de sua "melodia". Nesses instantes ela também o acompanhava com entusiasmo. O magote, em delírio, ria, gritava, assobiava, fazendo o maior estardalhaço. Alguns moleques até zombavam deles. Alheios às chacotas eles continuavam o espetáculo indiferentemente, como se assobios, apupos e gritos fossem os mais calorosos aplausos.<br><br>Passado o clímax daquela primorosa apresentação artística o instrumento silenciava e eles, braços dados, cerimoniosamente, andavam até a próxima esquina ou praça onde o aleatório espetáculo se repetia. Sempre acompanhados pelos seus ardorosos fãs, por anos a fio, naquela década, cumpriam uma espécie de ritual, vindos não se sabia de onde e indo também não se sabia para onde. Parece que moravam lá pelas bandas de Vila Medeiros, se é que moravam em algum lugar.<br><br>Poder-se-ia dizer dele o que se quisesse, menos que não fosse educado. Ninguém deixou nunca de receber o seu gentil "Boa Noite". Se sua música ou a sua dança eram dignas do Municipal, é duvidoso. Mas não é isso que conta. Eles alegraram a infância de muitos “vilamarienses”. A serenidade imperturbável de seus rostos, a pura e genuína alegria que transmitiam, deixaram marcas profundas em nossos corações infantis. Como eram grandes, na sua simplicidade, inocência e alienação!<br><br>"Boa Noite", onde você e sua mulher estiverem, que Deus os tenha. Muito obrigado. Agora reconhecemos sinceramente. Foram grandes aquelas apresentações e vocês sempre estiveram ótimos. Aquela criançada toda que os acompanhava aplaude agora, sem brincadeiras, sincera e honestamente.<br><br><br>E-mail: [email protected]