Muito mais para preparar para o futuro da vida que para engordar acanhados (apertados) orçamentos domésticos de proletários, era que pais paulistanos da época (final da década de 50) botavam filhos menores de 18 para trabalhar. Meus pais não fugiram à regra. E eu até que gostei. Em 1958, eu com 11 anos, arrumei (arrumaram-me) um empreguinho. Eu, entregador. Um principiante ajudante geral mirim. Aquilo que a óbvia inexperiência permitisse. Varrer, limpar vidraças de prateleiras e vitrines – depois "lustrar" os vidros com folha de jornal bem amassadinha… Atender balcão (só pedido fácil), buscar copos de água para o dono da farmácia, claro.<br><br>Atender ao telefone – daqueles aparelhos pesadões, de "baquelite", preto, de discar (rec-rec-rec), da Companhia Telefônica Brasileira – em alguns aparelhos, "Telephonica": "Alô! Bom dia! Farmácia Santo Antônio do Paraíso". Rua Amâncio de Carvalho, 85 – lembro bem, telefone 7 – "Meu" expediente: das 7h às 19h. Cinco minutos de minha casa. Paraíso? “Tá” bom. Alguns (muitos alguns) teimavam de chamar o lugar de "Paraíso". Ora, se as plaquetinhas nas paredes, abaixo das placas de ruas, falavam (em silêncio, só escrito): "Subdistrito Vila Mariana"… Lá pelos lados da Vergueiro, da Brahma, do Colégio Ypiranga, lá sim é que era Paraíso. A farmácia, vizinha da lojinha de armarinhos, brinquedos e bugigangas, do "seu" Gonçalves – cujo bigodinho fino minha memória ainda visualiza – a farmácia era perto do ponto final do 48-Paraíso. Daí provavelmente também a razão de ser do equívoco: Paraíso…<br><br>O ponto final do ônibus era na Pelotas com a Amâncio de Carvalho. Rua Pelotas que morria em um matagal. Nem havia ainda o Dante Pazzanese. O ponto era à frente do bar. Onde ficavam a "casinha" do fiscal, os motoristas e cobradores batendo papo e um grande latão com o logotipo CMTC, sempre cheio de água para os radiadores dos ônibus. <br><br>O bar? Do "seu" Pascoal. Ou "seu" Mesquita? De português, o certo é que o bar era. Assim como outros bares, frutas, legumes e verduras das feiras; chacareiros e motorneiros da CMTC. Já a padaria era do "seu" Carmelo: italiano. Padaria do pão com torresmo e do "pão suíço", minha mãe (quando) comprava. O dono da farmácia era o sisudo "seu" Humberto. Mineiro, ele referia. Não sei se de Belzonte. Ficava mais sentado no banco de madeira, à porta, que atendia. Muitos lembram: as farmácias antigamente costumavam ter bancos de madeira à porta e letreiros de neon – que o tempo suprimiu, a ambos… Mas a vida da farmácia era o Gutemberg. Prático-farmacêutico, mas um cara "bão", falavam. Idolatrado da clientela. "Um médico!", exageravam alguns, com toda a razão que um exagero pode conter. Atencioso e eficiente. Ele era de Ribeirão. Da Vila Tibério, creio. Daí, botafoguense. E palestrino, não só "Palmeirense"! Paulistanos daquela época, então com a idade que tenho hoje, se diziam também "palestrinos", os oriundi. E ficavam declinando "heróis": Oberdã Catani, Carabina, Fiume…<br><br>Lembro bem, de impressionado que fiquei. A moça entrou chorando, muito aflita. Trazendo no colo o grande cão dourado, igual à Lassie. Tinha ele levado um golpe de foice em uma pata dianteira. De um cruel chacareiro da Tomás Carvalhal. Não deu outra: o Gutemberg atendeu dentro do possível. Fez curativo. Amenizou o sofrimento canino. E o da moça. O resto era com o veterinário. A moça nem pensou em punir o chacareiro. As lágrimas dela deram curto espaço para um incipiente sorriso… Quando um cliente de imediato não achava o remédio na "nossa" farmácia, eu ia atrás daquele medicamento na Drogasil. Da Domingos de Morais, perto da Panificadora ABC. Bem ao lado de uma daquelas pastelarias, que à época eram comuns em um cantinho de bar, como devem lembrar contemporâneos de mim. E fãs de pastéis. Tempo em que só havia três modalidades de pastel, não? Como explicava o simpaticíssimo casal oriental: "káne, quêzo, paromito". À frente do Bazar Tamoio, que não era na Rua Tamoio.<br><br>Bem, por dois anos rodei um pedacinho daquela Vila Mariana de classe média alta, "acima da média". Senhores e senhoras gentis, muitos de ascendência europeia, que invariavelmente me ofertavam "caixinha" (aliás, muito bem vinda). O entregador de farmácia agradecia. Meus primeiros passos no "mercado de trabalho", passos rápidos de um moleque que sempre gostou de caminhar. E que, naquele servicinho, percorria muitas ruas que – raio de ação do atendimento – se situavam dentro de um enorme polígono cujo perímetro era determinado por Tutoia, Tomás Carvalhal, Cubatão, Rodrigues Alves, Humberto I, Rio Grande, Morgado de Mateus, Tangará, Amâncio de Carvalho… Além de incursões das Caravelas para baixo: Livramento, Pirapora, Tumiaru, Curitiba… Tal qual o pintinho que quebra a casca do ovo e sai ciscando pelo terreiro, era eu me afastando, mais e mais, da José Antônio Coelho, a Vila Mariana se descortinando para o moleque, de pacote em pacote. Foi muito gostoso!<br><br>Mudei da Vila Mariana aos vinte anos. Hoje tenho 65. De há muito, quando mudei, a farmácia tinha outro dono, depois fechou. A lojinha ao lado fechou igualmente: o homem de bigodinho fino mudou. Faz tempo que não passo pela Amâncio de Carvalho. A última vez, quem sabe há um ano, da janela do ônibus "Largo São Francisco", em um relance, tenho certeza que vi. Seu" Humberto, sentado no banco, o copo d'água que para ele busquei, nas mãos; o Gutemberg, jaleco branco, segurando o estojinho Inox de seringas e a borrachinha de "saltar veias". E "seu" Gonçalves – magrinho, em pé, ostentando o bigodinho de sempre…<br><br><br>E-mail: [email protected]