Artigo: Um imigrante do tempo

Um imigrante do tempo: O Brás de hoje se encontra com o Braz de ontem nas lembranças de quem nasceu e viveu no lugar

Por Érica Teruel Guerra

Em um dia ensolarado de agosto, Seu Domingos Ricardo Chiappetta foi surpreendido por um convite: retornar ao lugar onde nasceu. O que era para ser apenas uma entrevista em seu escritório se transformou em uma viagem no tempo: um passeio pelos locais em que vivera quando jovem. Sexagenário, Seu Domingos cresceu em um dos bairros mais cosmopolitas de São Paulo: o Brás, ou "Braz com z", como gosta de dizer. Seus avós maternos, Francisco Paulo e Maria Forte, italianos, casaram-se em um navio a caminho do Brasil. Abriram, na Rua Jairo Góes, travessa da Avenida Rangel Pestana, a cantina Adega do Braz, onde Seu Domingos, ou Ricardo, como era mais conhecido, cresceu, em meio ao cheiro da massa e do molho tipicamente calabreses.

Mudou-se em 1982 e, desde então, poucas vezes visitou a região. Exceto quando sua mãe faleceu, pois a missa de sua morte foi realizada na Matriz do Bom Jesus do Brás, igreja que gostava de freqüentar. Entrar novamente naquele templo, sobretudo para homenagear a mãe, não foi fácil para Seu Domingos. As paredes estavam descascadas, os vitrais quebrados, e por trás das redes que indicavam uma reforma parada, apenas sombras do que foi um local majestoso, lugar de encontros religiosos e, claro, sociais.

No local que abrigava a cantina dos avós, na Rua Jairo Góes, hoje está localizada uma confecção de plástico. Não há vestígio das portas de madeira, do chão de tacos originais do antigo restaurante. Tudo mudou. Seu Domingos se perde ao perceber a nova face da rua: os tons de cinza predominam. E, dentro das antigas casas que restaram, agora homens de olhos duros operam máquinas e encaram com estranhamento o olhar intrigado daquele que, por vezes, lamenta o que vê. Seu Domingos aponta o que hoje é um cortiço. "Ali costumava viver uma família muito rica." Seus olhos estão marejados, e mais, assustados.

Ainda na Rangel Pestana, hoje rua do comércio de couro, Seu Domingos entra em um prédio residencial. Pergunta ao porteiro se Dona Hilda ainda mora ali. O homem confirma, mas se recusa a chamá-la. "Eu só posso acordá-la à 1 [da tarde]". Seu Domingos insiste. Tem certeza de que a senhora vai atendê-lo. "Diga que é o Ricardo, o 'Nenê', filho da Lúcia." Hilda Tropea, quando abre a porta de seu apartamento, recebe Seu Domingos com exclamações. Era a melhor amiga de sua mãe. Morou no Brás toda a sua vida, e hoje, sozinha em um bairro transmutado, não coloca sombra de dúvida no que diz: "Não me mudaria daqui". Aos 86 anos, Dona Nena, como é conhecida, recorda os carnavais do começo do século. As cadeiras na calçada, os carros do corso, o chão que não se podia ver de tanto confete e serpentina. Quando se despedem, Dona Hilda e Seu Domingos se abraçam e as exclamações, com um vestígio de sotaque italiano, continuam. "Ê, Nenê, vê se dá notícias da tua gente, hein!".

O colégio, as meninas, o futebol

Quando entra na escola onde fez o primário, o Grupo Escolar Romão Puiggari, Seu Domingos se emociona. O prédio é um dos únicos que se mantêm conservados no bairro. As portas são as mesmas e o chão, de ladrilho, ainda é colorido. Mas muita coisa mudou. O pátio da escola diminuiu: hoje dá espaço a uma unidade da Fundação Casa (antiga Febem); no centro, a marca do alicerce deixa ver que havia uma separação entre meninos e meninas. Na sala também. Eram garotos de um lado, garotas do outro. Seu Domingos não tinha medo do castigo da época: "Até que não era ruim: quem fazia bagunça tinha que sentar com uma menina". A professora nem se virava. "'Ricardo, pode sair daí e sentar com a Beatriz.' Eu lembro dos nomes delas todas.".

Ele observa, quieto, os estudantes da 1ª série, que seguem em fila pelas escadas. "No meu tempo, era camisa branca, paletó, calça curta, meia até os joelhos.". E ai dele se chegasse em casa com as meias sujas. "Eu tirava as meias, jogava futebol, e depois as colocava de novo." A bola de futebol era improvisada. Para montá-la, os meninos pegavam as meias velhas das avós. E também na hora de torcer, Seu Domingos seguia a tradição italiana: torcia para o Palestra Itália, ou Palmeiras, enquanto os espanhóis, da Rua Piratininga, eram corintianos. Aos dez anos, subiu no carro de bombeiros para comemorar o título mundial do time, cujos jogadores vieram do Rio de Janeiro de trem e desembarcaram na Estação do Norte, onde hoje se localiza a Estação Roosevelt.

Mas o Brás mudou. E Seu Domingos também mudou. Vieram a adolescência, os passeios aos tantos cinemas e teatros que havia no bairro, os namoros. Vieram os nordestinos, que desembarcavam na Estação do Norte e por ali ficavam, começando a trabalhar em um ainda insípido comércio de tecidos. Dona Thaís desposou Seu Domingos. Vieram as filhas. O prefeito Adhemar de Barros construiu a ponte sobre a linha do trem e acabou com as famosas porteiras, que serviam de gangorra para os meninos do bairro. Veio o metrô. Centenas de famílias tiveram suas casas desapropriadas e mudaram-se.

A cantina Adega do Brás teve de ser fechada. Seu Domingos se formou em Direito. O bairro se consolidou no comércio de tecidos, couro, roupas e sapatos. A maior parte dos estabelecimentos pertence a nordestinos e a coreanos. Bolivianos trabalham por remuneração mínima. Mas algo não mudou no Brás: de segunda a segunda, o bairro continua recebendo gente do Brasil e do mundo. E, naquela quinta-feira ensolarada, recebeu um imigrante diferente: o menino Ricardo.

e-mail do autor: [email protected]