Anos 60, começo. O adolescente ultrapassa limites do bairro onde mora e depara com um gigante: a Paulicéia. Percorre-lhe, a partir daí, os quatro cantos. De ônibus, de bonde, de trem de subúrbio (metrô? Coisa do futuro): começa a descobrir a diversidade paulistana.
Os ônibus, ou são da CMTC (Prestes Maia muda o tradicional e originário grená para um alaranjado), ou são "particulares", como se denominavam as demais concessionárias das linhas. O moleque se familiariza com os "ônibus elétricos", zunindo por então poucas linhas, para a Aclimação, Jardim Europa, Mooca ou Santana. Pitoresca é a última linha de bondes abertos dos dois lados: 24 – Praça Clóvis/Belém, 101 – Praça João Mendes/Santo Amaro, além-biológico é verdadeira "linha de trem": linda! Mas os bondes agonizavam. Os derradeiros morrem em 1968, no Largo Treze. Trens de subúrbio são quatro grandes trechos: I – Santos a Jundiaí (Luz): belos carros de aço inoxidável BUDD, prateados; II – Central do Brasil (Roosevelt): linhas tronco e variante, ambas para Mogi; III – Sorocabana: trens elétricos japoneses, verdes (Júlio Prestes), e Maria-Fumaça (!), IV – Cantareira (João Teodoro): que bifurca na Estação Areal. Nada disso o cara conhecia…
Osasco, por pouco tempo, ainda é bairro, e para lá o sacolejante e barulhento papa-fila FNM, via Estrada Velha de Itu. Aliás, a cidade tem muitas "estradas" na malha urbana: do Mandi, do Cursino, de São Miguel, de Itapecerica, Velha São Paulo – Rio… sob jurisdição do DERMU. Marginais, dos rios? Fragmentos. Arranha-céus? Quase que só no Centro. No Tietê, remadores. Nos "arrabaldes", chácaras de flores e hortaliças, circos, parquinhos de diversão. Túnel? O Nove de Julho, só. Pontes e viadutos? Alguns. Muitas porteiras, nas linhas de trem. Rodoviária da Júlio Prestes: formigueiro, de pessoas e de ônibus. Conhecendo São Paulo…
O aqui "protagonista" se surpreende com o coração fabril de Piratininga: São Paulo produz de tudo: de brinquedos Estrela a caminhões Ford. Multidão de chaminés. Barulho, apitos. Fumaça que é, simultaneamente, progresso e poluição. Indiscutivelmente, São Paulo é esse conjunto de chaminés. Aromas: Canindé e Lapa recendem a biscoito; Belém e Mooca, a café; no Brás, cheiro de cigarro; no Brooklin, olfato de chocolate Lacta. Teares ruidosos no Ipiranga, no Tatuapé, no Belém. A imponente chaminé da Brahma, no Paraíso, é branca e tem cheiro característico.
Matarazzo, das mil fábricas, é colossal n'Água Branca. N'Água Funda, uma siderúrgica dentro da cidade: Aliperti. Já na outra "água", certamente, também fábricas: Água Rasa. Em Perus, gigantesca fábrica de cimento e sua linhazinha de trem, de bitola estreita. São Miguel Paulista exibe a grande Nitro-Química. Indústrias encravadas no Pari, na Casa Verde, em Vila Maria, Catumbi, Ponte Pequena, Barra Funda, no Anastácio, em Jurubatuba, Parque Novo Mundo… Enxame de operários, homens e mulheres de macacões de brim azul semeando e colhendo trabalho. Muitas fábricas – constata o moleque, têm "cara" sisuda. Há outras, de tijolinhos aparentes. Grandes ou pequenas, são a São Paulo pulsante, "maior parque industrial da América Latina".
Há muitas ruas de paralelepípedos, outras tantas de terra e sem iluminação. Bairros afastados, que parecem cidadinhas do interior – com pracinhas e coretos, grandes vazios e vegetação.
Pontilham o céu da Zona Norte os teco-tecos do Aeroclube, que brotam, como libélulas, do Campo de Marte. No lindíssimo Congonhas, "mais um Caravelle da Cruzeiro do Sul, a bordo do Brasil", garante o jingle. Imortais DC-3 com a inscrição "Vôe pela Real" (com acento).
Lampejo (meu) de memória: um pouco do mensurável – pois São Paulo já era infinita – daquilo de que me recordo, aos treze anos. Quando comecei a fazer entregas nas ruas, para longe de Vila Mariana, onde morava. Vila Mariana de ruas orladas por tipuanas; das chácaras de portugueses, onde hoje se enfurecem os veículos, na Vinte e Três de Maio; do campo do Olimpicus "do Paraíso", Tomás Carvalhal com Oscar Porto (de cujo barranco se avistavam os aviões pousando no xadrez de Congonhas). Da Estamparia Caravelas, dos casarões e dos lindos sobradinhos, das casas com quintal… E da Estação dos Bondes!
Do ranger das rodas nos trilhos, dos bondes camarões que desciam a Avenida Rodrigues Alves – do Largo Dona Ana Rosa até o Instituto Biológico. Ruído, então, possível de ser ouvido, por exemplo, à noite, quando trazido pelo vento – e com a cumplicidade do silêncio. Em tempo: eu morava quase a um quilômetro daquela Avenida.
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