Almas benditas

Quase cinquenta e seis anos são passados da colação de grau da então normalista Yvonne no tradicional estabelecimento de ensino "Instituto Dr. Álvaro Guião", em São Carlos. Mesmo sendo oriunda de uma família abastada, a novel professora não hesitou em contrariar expressamente a vontade paterna, alçando voo rumo aos caminhos grandiosos do interior paulista a fim de lecionar.

Nestas localidades, a iniciante no sacerdócio do magistério se deparou com múltiplas e díspares realidades, que muito a ensinaram a entender a complexidade do ser humano em diferentes épocas e arquétipos sociais.

Cumprindo bem e fielmente o seu mister, a mestra Yvonne finalmente chega à capital, onde primeiramente presta serviços educacionais na Casa de Infância do Menino Jesus (situada no Ipiranga), utilizando o método pedagógico de Maria Montessori, com adaptação de Lubienska de Lenval. Posteriormente, vem efetivar-se como professora especializada, exercendo seu lapidar magistério nas classes pré-primárias da "Escola Estadual de Primeiro Grau Buenos Aires", em Santana.

Nesta mesma época, Yvonne vincula-se à prestigiosa Associação das Voluntárias do Hospital das Clínicas de São Paulo, oportunidade em que pode travar inúmeros conhecimentos com a honrada classe médica. Dentre os aclamados doutores, destaca-se a alma boa e gentil do pediatra emérito Dr. Paulo Eiró Gonsalves; renomado profissional que nos dias de hoje ainda exerce seu labor em seu consultório sito na Rua Jaguaribe.

Paralelamente a sua atividade profissional, dedica-se à literatura, escrevendo inúmeras obras de conteúdo médico dirigidas ao público em geral. Frutos de seu abalizado conhecimento haurido dos muitos anos de prática clínica, "Alimentos que curam" e "O que devemos saber" se constituem em verdadeiros repositórios da ciência médica, postos à disposição de todos aqueles que desejam dominar o que se convencionou chamar de “ciência do bem viver".

Não poderia olvidar, outrossim, da personalidade ímpar do Dr. Octavio Ribeiro Ratto (já de saudosa memória); o qual fora um dos fundadores da então Escola Paulista de Medicina e também o primeiro titular da Cátedra de Pneumologia da retrocitada Universidade.

Recordando, acerca das diversas passagens envolvendo tão magnífico ser humano, minha mãe Yvonne não se esquece de rememorar o seguinte fato: após consultar-se, dirigiu-se ela à secretária Elza com o fito de efetuar o correspondente pagamento, sendo na ocasião polidamente interrompida pela gentil senhora. O admirável doutor negava-se a receber a contraprestação que lhe era devida, alegando que nada poderia cobrar de uma COLEGA!

Despindo-se das fúteis vaidades que envenenam o ser humano em seu cotidiano, o insigne Dr. Octavio Ribeiro Ratto punha em prática o propalado primado da IGUALDADE; ideal alentado pela Humanidade desde os seus primórdios, mas infelizmente pouco efetivado nesta época hodierna.

Em um dia previamente designado pelo destino, duas almas, límpidas almas, se encontram nas dependências do festejado Tênis Clube Paulista, agremiação a qual eram associadas. Maravilhada pela "beleza espanhola" do jornalista Ramon Áureo (in memoriam) e principalmente pelo seu alto nível de intelectualidade, cultura e desprendimento, a jovem professora decide por fim casar-se.

Passados alguns meses do enlace, minha mãe engravida e, malgrado ter se acautelado devidamente no período gestacional, não fazendo uso de álcool, nem tampouco fumando, acaba sendo surpreendida por um parto prematuro.

Eu, então, venho ao mundo com apenas oito meses de gestação, pelas hábeis e abençoadas mãos do reconhecido obstetra Dr. Awad Damha, conterrâneo de mamãe e colega de turma de meu tio Sérgio Ferraz Rocha (também de saudosa memória), na então Escola Paulista de Medicina, hoje UNIFESP.

No decorrer dos dias, meus pais constatam minha intolerância ao leite de vaca, e ato contínuo comunicam o fato ao meu tio Sérgio, o qual prontamente passa a dispensar as instruções atinentes aos procedimentos medicamentosos e alimentícios com muita diligência e carinho. Amparados pela serenidade e competência indubitáveis de meu tio, meus pais puderam vislumbrar um futuro promissor para mim, ainda que para tal concretização tivessem que se dedicar amiúde.

Leal servidor do povo brasileiro, meu tio que à época dos fatos era Major Médico da Aeronáutica (granjeou por seus irrefutáveis méritos a patente de Coronel Médico), exercendo sua ciência nas mais distintas plagas do território nacional, não poderia, destarte, ficar inteiramente responsável por minha assistência médica.

Em virtude disto, meus pais houveram por bem procurar os ínclitos pediatras Drs. Alberto José Martins Ribeiro e Pedro Antonio Armelini, no consultório já deveras conhecido localizado na Rua José Maria Lisboa, nos Jardins.

Emergem das minhas lembranças as figuras virtuosas destes entes singulares, os quais sempre tiveram como linhas mestras a ética consubstanciada em atos prontos a aliviar o sofrimento físico e psíquico de seus pacientes, bem como dos familiares destes. Porque os verdadeiros médicos agem como sempre o fizeram os Drs. Alberto e Pedro, como se fossem mensageiros de esperanças e boas novas, trazendo consolo a quem efetivamente necessitasse.

A atuação técnico profissional de cada um dos médicos referidos foi exitosa, adequando-se perfeitamente ao quadro clínico apresentado, e o resultado consequentemente foi portentoso. Atualmente, não trago qualquer sequela relativa à minha intolerância à lactose, podendo me alimentar com real diversidade e fartura.

O correr dos tempos seguramente não apagará o brilho inigualável das excelsas virtudes destes seres humanos grandiosos, cuja fraternidade, decência e amor incondicional ao semelhante certamente nortearão as condutas de todos aqueles que fatalmente desejarem ostentar os reais predicados dos HOMENS DE BEM!

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