Acidentes de bondes

Acidentes com bondes elétricos eram freqüentes nos primeiros tempos da Light. Ruas estreitas, mal iluminadas e de calçamento deficiente eram percorridos por muares, pequenas viaturas e descuidados pedestres, para os quais o "progresso" ainda não interferia nas suas vidas calmas e sossegadas.

Muitos dos motorneiros que conduziam os bondes, se bem que treinados e orientados, não tinham estabelecido uma relação de eficiência e de domínio das suas máquinas possantes e velozes. É curioso lembrar que, já próximo do fim dos bondes nos anos 60, havia motorneiro que ainda invocava, como atenuante ao seu envolvimento em acidente, o velho argumento de que "bonde não sai dos trilhos".

Os jornais sempre noticiaram, como ainda hoje, os acidentes de rua. A Light recortava e arquivava essas notícias. Os destaques se referiam às ocorrências sensacionais ou à importância das pessoas envolvidas.

"Lamentável ocorrência"

(Jornal A Platéia, 23/04/1910 – com a grafia da época)

"Uma notícia tristissima circulou ontem, à tarde, pela cidade, enchendo a todos de vivo pesar: cerca de 4 horas, na rua do Arouche, proximidades da rua Aurora, o interessante menino Francisco, de 7 anos de idade, filho do Dr. Vicente de Carvalho, juiz da terceira vara criminal e eminente homem de letras, fora vítima de um horrível desastre.

O desventurado menino ali transitava descuidadamente, de volta da escola e com destino à casa de seus paes.

Ao atravessar os trilhos da "Light", o bonde nº. 15, que vinha do Maranhão para a cidade, guiado pelo motorista Vicente Piccirrillo, chapa nº. 133 colheu-o desastrosamente, atirando-o por terra a um impulso violento do limpa-trilhos.

Na queda foi tão infeliz a creança, que ficou com o pé direito sob uma das rodas do veículo.

A um grito lancinante de Francisco, acudiu o transeunte Sr. Francisco Márquez que tratou de socorrê-lo.

O bonde nem siquer parou; ao contrário, o motorista vendo a vítima de sua imperícia por terra e medindo a extensão do grande mal que lhe fizera, imprimiu maior velocidade ao veículo com idéia de escapar à prisão em flagrante.

O Sr. Francisco Márquez tomou a creança desacordada aos braços e, num carro de praça, solícita e carinhosamente, transportou-a à casa de um facultativo residente nas imediações.

Não o encontrando, o Sr. Márquez mandou tocar o carro para a Repartição Central de Polícia.

Entre gritos de dor, Francisco foi conduzido ao Gabinete Médico Legal com o pé horrivelmente dillacerado e os dedos mutilados.

Examinou-o o Dr. Xavier de Barros, que desde logo opinou por uma intervenção cirúrgica, que só poderia ser feita, com a urgência que necessitava, na Santa Casa de Misericórdia.

Colocado um aparelho provisório no menor, foi ele removido para aquelle estabelecimento, onde procederam imediatamente a amputação dos cinco dedos, pespontando-lhe a grande ferida que deixava à mostra os ossos do pé.

O Dr. Allarico Silveira, 4º Delegado Interino, compareceu ao local em companhia da Exma. Esposa do Dr. Vicente de Carvalho.

Na audiência de depois de amanhã, daquella autoridade, será iniciado processo contra o motorneiro Vicente Piccirrillo.

A família do Dr. Vicente de Carvalho tem sido visitadissima.

O Dr. Vicente de Carvalho presidia a sessão do jury, quando lhe comunicaram, por telephone, a desagradável notícia.

Só quem conhece aquelle coração amantíssimo de pae pode avaliar a tortura por que elle passou, até que o conselho de sentença, que já estava recolhido, voltasse da sala secreta e elle pudesse ver e accudir o filhinho ferido.

O Dr. Vicente de Carvalho e sua Exma. esposa passaram a noite toda à cabeceira do pequenino doente.

De manhã fomos visita-lo em seu leito de dor.

O Dr. Baeta Neves tinha acabado de fazer os penosos curativos. Francisco, despreocupado, brincava, enfileirando no alvo linho do lençol um batalhão de soldadinhos de chumbo.

O estado do enfermo é muito lisongeiro.

Bonde mata porco na Liberdade

No dia 13 de setembro de 1911, os jornais de São Paulo noticiaram com destaque o atropelamento ocorrido às cinco horas e dezoito minutos da manhã anterior, na rua Tamandaré, bairro da Liberdade. O acidente foi causado pelo bonde 327, que descia aquele logradouro em grande velocidade e, sem poder ser freado a tempo, investiu contra uma vara de noventa porcos que era conduzida para a estação do Norte, no Brás, onde embarcaria para o Rio Grande do Sul. O resultado foi sete animais mortos e cinco gravemente feridos esperando, até as duas horas da tarde do dia seguinte, a chegada da perícia.

O jornal "Commércio de São Paulo", de onde esta notícia foi tirada, descreveu o cenário: "Este trecho da rua ficou transformado em uma vasta poça de sangue, de mistura com os intestinos dos animais mortos ou feridos, apresentando assim o repugnante aspecto do matadouro da capital".

Esta notícia pitoresca também dá uma idéia do que era São Paulo no início do século passado: provinciana e pacata, a ponto de permitir o trânsito de animais soltos pelas vias públicas.

Permitir não é bem o termo, já que esse procedimento vinha sendo reiteradamente proibido desde o século XVIII. Nuto Santana, historiador que se dedicou a vasculhar os anais de nossa Câmara, é quem relata:

"A 14 de fevereiro de 1756, em vereança, estourou a indignação dos senhores vereadores. Uma das últimas disposições sobre o abuso de se trazerem porcos soltos pela vila não fora tomada em consideração. Entraram por um ouvido e saíram por outro. E se assim agiram os donos, melhor não fizeram os suínos que continuaram tranqüilamente a refocilar. Não estiveram porém pelos autos os edis.

Já que não tomaram providências as pessoas que tem porcos pelas ruas da cidade que deviam ter presos em suas casas, ou seus sítios, de acordo com o edital publicado e assim por não ser conveniente a limpeza das ruas, e causarem peste, requereu o procurador do Conselho, Manoel José de São Payo, que determinassem os seus pares ao alcaide, ou outro qualquer official de justiça os possam (sic) matar, ficando a metade para quem os matar e a outra metade para os presos".

Na defesa do motorneiro – em ação que lhe foi movida por Giacomelli & Simonini, os proprietários dos animais sacrificados e avaliados em um conto e quatrocentos e cinquenta mil réis -, não há referência sobre a antiga disposição da Câmara de São Paulo, datada de 1756.

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