A Vila Itororó

Certa vez, Furio Lonza fez esta pergunta a um editor de revista: “Responda rápido: se o Coliseu romano ou o Paternon grego fizessem parte da história e da paisagem paulistanas, ainda estariam de pé? Provavelmente, não. Com toda certeza, o terreno teria sido arrendado por um grande banco, as edificações teriam sido demolidas por implosão (as TVs dariam tudo ao vivo e a cores) e o material vendido como sucata. Na melhor das hipóteses, o Coliseu poderia virar um caipiródromo e o Paternon, talvez, mais uma filial da Assembléia de Deus”.
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Disse o intelectual italiano Vittorio Sgarbi, em seu último livro, “Della'Itália Uomini e Luoghi” (Da Itália Homens e Lugares), no auge da indignação: “Quem nunca viu uma cidade se consumir em chamas, provavelmente não terá entendido que essa época está para se encerrar”.

No caso da cidade de São Paulo, não é uma época que está para se encerrar, mas a "derradeira" época.

Vemos com pesar, às vezes só com o auxílio da lupa, alguns significativos e esparsos monumentos e casarões, verdadeiras manchas urbanas, que ainda atestam a existência de um passado arquitetônico e uma memória, autênticos sobreviventes da devastação e do processo autofágico de transformação da metrópole.

A Vila Itororó, encravada no folclórico bairro do Bexiga, é um desses exemplos. Esse singular conjunto de trinta e sete casas construídas nos anos 20, na Rua Martiniano de Carvalho, pelo português Francisco de Castro, é o surpreendente resultado de um sonhador. A casa é circundada por vigorosas colunas arrematadas por capitéis, que pertenceram ao antigo teatro São José, e que sustentam apenas uma delicada passarela à volta do volume central.

Leões guardam a entrada principal. Cariátides, carrancas, esculturas e ornatos vários entram na composição do conjunto. Vidros coloridos com bandeiras de diferentes Estados e nações ornam as janelas. Numa das salas, aparecem atlantes, que emprestam ao ambiente um clima soturno e opressor.

Novos ricos

Surpresas se sucedem. Um braço de lampião com armas do Império ajudam a sustentar um corpo saliente: há ainda um balcão preso a colunas de ferro, por sua vez presas a um trilho superior e outras soluções estruturais engenhosas. Ao fundo, uma piscina – segundo alguns historiadores, a primeira a figurar em uma residência de São Paulo -, junto à qual foram colocadas esculturas de inspiração greco-romanas.

Concluída em 1922, a Vila Itororó era conhecida popularmente como a casa surrealista, e não é improvável que tenha sido freqüentada pelos vários intelectuais da geração modernista.

Não vamos insistir demais nos itens da especulação imobiliária, na falta de preocupação dos poderes públicos com os aspectos de documentação e preservação da memória, na voracidade pseudo-desenvolvimentista da cidade de São Paulo e na falta de uma política coerente de urbanização. Coloquemos apenas que a Vila Itororó é um marco e um mito, um parâmetro. É um conjunto de casas que se destaca da paisagem urbana por uma feição original, do ponto de vista arquitetônico e cultural, uma vila que reflete um aspecto incomum do imigrante enriquecido, numa época em que os novos ricos ainda não tinham descoberto a rota para Miami para adquirirem seus imprescindíveis telefones celulares ou os microcomputadores de bolso. Era uma época de sonhos, onde se sobressaía principalmente a imaginação e a criatividade.

Por essa e por outras que era visto com bons olhos a preocupação de uma jovem arquiteta paulistana, recém-formada pelo Mackenzie, em transformar a Vila Itororó num centro de lazer, educação e cultura aberto ao público. Para Priscila Belchior de Sousa, o objetivo era basicamente restaurar e revitalizar o conjunto de casas que estava servindo de abrigo a mendigos e que caminha, ano a ano, para uma deterioração total de suas estruturas, descaracterizando completamente o seu conjunto.

Entre outras idéias, a preocupação de Priscila era resgatar a história do mestre Francisco de Castro, antigo industrial de Americana, que se transferiu para São Paulo, aonde veio encontrar sua verdadeira vocação. Amigo de festas e noitadas que promovia em sua vila, ele realizava assim seu sonho de poder e preparava a construção de seu palácio.

Comprando os materiais de famílias que puderam importá-los e até da sociedade paulistana ao erigir o teatro São José, o mestre Castro foi construindo a Vila Itororó por etapas, num processo de acréscimo sucessivo, conferindo ao conjunto a característica de uma colagem, oscilando entre o impossível sonhado e a realização deformada.

Fazia parte do projeto o aproveitamento de todas as casas, que seriam transformadas em escola pública (berçário, 1º e 2º graus e alfabetização de adultos). O casarão propriamente dito (o “palácio”), em seus vários níveis, abrangeria todo aspecto cultural (uma biblioteca pública; uma galeria de arte e um museu, que abrigaria as peças demolidas e os objetos preservados).

Como toque complementar, no pátio seria construído um anfiteatro romano, resgatando a idéia inicial de ecletismo e bizarria arquitetônica de Castro em sua monumental colagem de estilos, aproveitando os arcos já existentes. Esse teatro seria alugado a grupos amadores e profissionais, constituindo-se numa das fontes de renda para a manutenção do conjunto, onde também haveria um bar.

A piscina, com água natural da fonte, também seria revitalizada e restaurada, fechando a idéia inicial do mestre Francisco de Castro.

Desnecessário enfatizar o caráter de deterioração da atual Vila Itororó. A falta de conservação e as intervenções posteriores propiciaram substituições inadequadas das passarelas de ligação que, na concepção original do projeto, se destacavam pela leveza de sua solução. As edificações sofrem dia-a-dia sério risco estrutural com o recalque do terreno, deslocando o prumo de algumas colunas e paredes de sustentação.

Além disso, a área toda, por falta de cuidados, transformou-se em depósito de lixo da vizinhança. Ornatos, relevos, carrancas, pinturas, murais, sem contar os bens móveis, como bancos, vasos, floreiras, são ameaçados por intervenções inábeis. Caso das caiações sucessivas, cobrindo as pinturas murais e alterando a modelagem dos relevos das esculturas – a exemplo do que ocorreu na casa da Marquesa de Santos, que será aberta ao público, após a restauração.

O projeto de recuperação urbana da Vila Itororó, segundo a arquiteta Priscila, tinha como proposta básica devolver à população uma área totalmente remanejada, com uma destinação sócio-cultural e de lazer, preservando a memória arquitetônica de uma das épocas mais interessantes da cidade de São Paulo. Isso antes que as chamas que falava o italiano Sgarbi queimem de uma vez a última página de nossa história.

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