Desde 2006 que vinha procurando um novo imóvel de moradia, mais novo e espaçoso, conforme os misteres de um intelectual com uma colossal biblioteca, como a deste seu modesto apaixonado pela capital paulista, que lhes escreve esta pequena história, que traz mais um pouco de informação sobre nossa cidade. Acionei vários corretores imobiliários, salientando as características do apartamento e dos bairros em que procurava. Choveram contatos, entre os quais os de um corretor cujo nome a ética me leva a ocultar e – creio eu – assim que a narrativa prosseguir, os leitores entenderão os motivos do anonimato. O referido cavalheiro dispunha-se a mostrar-me imóveis no bairro da Aclimação.
Curiosamente, quando o imóvel se situava às imediações da Avenida José de Queirós Aranha, o corretor jamais deixava seu veículo à dita avenida, às vezes caminhando quilômetros para chegar ao local do apartamento que intencionava mostrar-me. Certo dia – ou melhor, noite – sem outra alternativa de estacionamento, deixou o carro à mencionada avenida. Mal desceu do carro, tropeçou, caiu e se "estatelou" na guia. Algumas semanas mais tarde, encontrei-me com ele outra vez, por propósitos profissionais. Andava com tipoia no braço, pois, segundo suas próprias palavras, "as almas dos estropiados cativos" se vingaram novamente dele por deixar o carro à Avenida José de Queirós Aranha. Desta vez, minha curiosidade foi devidamente satisfeita.
Chequei todas as informações que se seguem no portal www.dicionarioderuas.com.br. Até fins do século XIX a região que hoje ocupa o quadrilátero de vias públicas Avenida José de Queirós Aranha/Bartolomeu de Gusmão/Apeninos e Armando Ferrentini era ocupada por uma fazenda, cujo dono cobrava dos proprietários de escravos das redondezas para açoitar-lhes os cativos que cometessem alguma "desfeita" (não chamar o patrão de sinhô, deixar uma parte da lavoura inacabada ou, já em fins do período escravagista, quando muitos eram escravos de aluguel, não fazer os serviços a contento de seus "locatários"). Batia com tal crueldade que o escravo saía do pelourinho "descadeirado" e ainda era obrigado a voltar a pé – obviamente claudicando pelos ferimentos – à casa de seus senhores. A ladeira que hoje é a Avenida José de Queirós Aranha era conhecida até inícios do século XX por "Ladeira do Quebra-Bunda" ou "Da Quebradeira".
O leitor deve estar a se inquirir o que esta história de dor e humilhação tem a ver com o meu corretor de imóveis e sua recusa de estacionar o carro às imediações da "Ladeira". Também indagava e logo veio a resposta: o corretor é descendente do pérfido fazendeiro açoitador de cativos e toda vez que anda a pé pela Avenida José de Queirós Aranha ele se machuca de alguma forma. Segundo ele, é uma "revanche das almas dos escravos". Como psicólogo, sei que tudo é auto-sugestão dele, mas que desta história emergem conteúdos do nosso triste passado escravocrata, é indubitável.
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