A peneira do Corinthians

É difícil precisar exatamente o ano, mas o acontecido nunca me saiu da memória. Nossa turma, quase todos os dias da semana, na parte da tarde, se reunia no campo do Centenário que ficava na Rua Celina, na Vila Esperança. A bem da verdade, a Rua Celina passava exatamente no meio do campo do Centenário, um time de veteranos, a maioria residente na Travessa Centenário.

No meio daquela turma, destacava-se Giba, um garoto de aproximadamente 14 anos. Era canhoto e gostava de jogar na ponta esquerda. Um exímio driblador, difícil era tirar-lhe a bola. Seu nome era Gilberto, o mesmo nome do seu pai. Ele jogou em quase todos os times da várzea da Vila Esperança, foi mirim, infantil, juvenil, etc., e foi ficando famoso pelos seus dribles e pelo futebol que jogava.

Num final de semana, nosso time foi jogar num campo de futebol no bairro de Vila Carrão, valendo uma taça. O time deles era melhor que o nosso, e seus jogadores, mais velhos e experientes. E ainda tinham a seu favor o fator campo e torcida.

Começado o jogo, nosso time estava meio que inibido. Não se comunicavam em campo, as jogadas eram acanhadas e os passes eram imprecisos. Nada estava dando certo… E aos 10 minutos de jogo, nossos adversários abriram o placar. A comemoração da torcida adversária fez aumentar ainda mais a inibição dos nossos jogadores. Eu nunca tinha visto nosso time tão apático. Pouco tempo depois, outro gol dos adversários, e uma festa ensurdecedora da sua torcida. Nossos torcedores já estavam preocupados com uma goleada.

Foi aí que o senhor Chico, pai do nosso centroavante Oswaldo, gritou para que passassem mais bolas para o Giba. E foi nessa hora que percebemos que ele estava desaparecido no jogo. Até aquele momento, Giba não tinha recebido nenhuma bola.

Aquele grito desesperado acordou nossos jogadores e despertou também a nossa torcida, que passou a gritar pelo nome do time. Logo na primeira posse de bola, o nosso armador, Juarez, passou-a ao Giba, que estava esquecido na ponta esquerda do gramado, e a bola chegou redonda. Ele a dominou, e quando o primeiro marcador deu combate, levou um drible desconcertante, e os demais que vieram em seu socorro também foram driblados. Nessa jogada, Giba cruzou a bola e o Oswaldo, nosso centroavante, cabeceou no meio do gol, assustando o goleiro que espalmou a bola para a linha de fundo.

Nossa torcida vibrava, mesmo perdendo por dois a zero. A torcida adversária ria e ainda brincava com os seus jogadores que tinham sido driblados, e isso começou a irritá-los. O primeiro tempo terminou em dois a zero para eles. No intervalo do jogo, o senhor Chico avisou os jogadores que os adversários estavam incomodados, e que o Giba deveria ser mais acionado, pois estava desequilibrando os adversários. Orientou também para que o Giba segurasse a bola o máximo possível, e quando cercado, ao invés de cruzá-la para a área, passá-la para o Juarez, que se encarregaria de fazer sua distribuição.

Não deu outra: o Giba deitou e rolou, e na quarta bola que recebeu, quando a marcação estava toda em cima dele, ele recuou a bola para o Juarez, que levantou a bola para o Oswaldo, que a mandou para o fundo da rede. Dois a um para eles e nosso time subindo de produção.

Os adversários estavam sendo triturados dentro do seu próprio campo e as jogadas começaram a ser mais deselegantes, ou mais desleais. Eles já não jogavam bola, corriam atrás dos nossos jogadores. E o gol de empate já estava maduro, só faltava acontecer. Numa descida do nosso ataque, um beque mais ignorante deu uma pegada forte no Giba, que o tirou do jogo. Ele saiu, mas o time continuou com a moral forte.

Quando o Giba estava fora de campo, ainda deitado, pois sua perna doía muito, aproximou-se um camarada dizendo-se representante do Corinthians e lhe passou um cartão de apresentação indicando-o para fazer um teste no Corinthians. Aquela notícia começou a espalhar-se entre nossa torcida, depois também entre a torcida adversária. Logo, todos os que estavam em campo tomaram conhecimento do fato.

Nossos jogadores dedicaram-se mais ao jogo, e o Oswaldo acabou fazendo o segundo gol. Minutos depois, a partida foi encerrada, e o empate para nós teve um sabor de vitória. O Diretor do time adversário fez questão de nos entregar a Taça, pois achou que, apesar do empate, a merecíamos, e fez questão que ela fosse entregue ao Giba, e quem iria entregá-la, por determinação dele, era o beque que tinha tirado o Giba do jogo.

Naquele tempo, o time da casa não batia nem desrespeitava jogadores e torcedores visitantes, pois se assim o fizessem, corria o risco de nenhum outro time jogar no campo deles. Quase todos os times varzeanos mandavam relatórios para o jornal A Gazeta Esportiva informando do jogo, do resultado, escalação do time, etc. e ocorrências extra-campo, e nenhum time queria que fosse noticiado qualquer acontecimento grave que viesse a ocorrer tanto com jogadores e dirigentes, ou torcedores adversários.

Nossa volta para a Vila Esperança foi feita na carroceria de um caminhão, que era o transporte viável, embora proibido. A festa na carroceria foi geral: festejava-se a Taça recebida, assim como se festejava também o convite para o Giba.

No dia marcado, acompanhei o Giba até o Parque São Jorge, e quando lá chegamos, já era grande a movimentação de jovens que participariam dos testes. À medida que chegavam, os jovens eram direcionados ao campo de futebol. O teste era o que chamávamos de “rachão”: times formados de jovens que estavam sendo testados, disputando entre si, uma partida de futebol. Quem testava os jovens era um senhor, que alguns meses depois eu fiquei sabendo tratar-se do Sr. Jose Castelli, conhecido também como Rato, que tinha sido jogador do Corinthians por muitos anos, isso na década de 30. O Giba ficou na fila do teste em vigésimo terceiro lugar.

Respeitando uma ordem do senhor idoso, um dos seus auxiliares chamava um dos garotos que estava jogando e o sacava do time; imediatamente mandava entrar em seu lugar o primeiro da fila, sem que instrução alguma lhe fosse passada. Ficamos sabendo depois que aquilo já fazia parte do teste, para poder observar o posicionamento em campo que o testado iria tomar.

A vez de meu amigo chegou e ele entrou em campo exatamente no momento que seu time adversário estava atacando. Quando ele tentou tirar a bola, o adversário ameaçou chutar e ele virou-lhe as costas e o adversário saiu leve e límpido, e ainda passou a bola para um atacante que fez um gol. O senhor idoso imediatamente ordenou que seu auxiliar substituísse aquele jovem que tinha virado de costas perante um adversário. Quando o Giba recebeu o recado de que seria substituído, veio correndo e foi logo dizendo que ele tinha acabado de entrar. O senhor idoso disse que ele deveria ir para casa, estudar e arrumar um bom serviço e que ele nunca seria um jogador de futebol profissional, porque ele tinha medo de bola. Ele ainda tentou argumentar, mas o senhor idoso o desmontou quando disse que ele, com medo de levar uma bolada, virou as costas para o adversário que passou livre por ele e deu um passe para o gol.

Ele nunca mais foi o mesmo, perdeu todo o interesse para o futebol, desligou-se da nossa turminha e mergulhou nos estudos.

Algum tempo depois, eu mudei de bairro, comecei a trabalhar e deixei de frequentar também o campo de futebol. Passados aproximadamente 30 anos, isso no ano de 1988, eu estava numa loja de venda de acessórios e equipamentos para veículos, de propriedade de um amigo, e ele tinha compromisso agendado com um industrial, dono de uma indústria de escapamentos de veículos no bairro do Tatuapé e pediu que eu lhe fizesse companhia. Como nada tinha a fazer, resolvi acompanha-lo.

Chegando à indústria, ele identificou-se e disse que desejava ser atendido pelo Dr. Gilberto. A funcionária que nos atendeu pediu que aguardássemos um pouco e, logo em seguida, ela voltou dizendo que podíamos entrar, pois o Dr. Gilberto iria nos atender.

Quando o meu amigo cumprimentava o Dr. Gilberto, percebi que aquela pessoa era alguém que eu já tinha visto em algum lugar. Procurei auxílio imediato da minha memória, que me levou à Vila Esperança, e que me ligou ao Giba. Ele ainda cumprimentava meu amigo e olhou para mim fixamente, e perguntou "você não é o Hermes?"; respondi “sim” e perguntei "você é o Giba?!" e ele respondeu “sim”.

Conversamos por algum tempo, lembramos de alguns amigos comuns, jogamos conversa fora, e quando nos despedimos, ele me disse:
– Aquele velho tinha razão!
– Qual velho? – perguntei.
– O Rato…
– Rato? Que rato?
– Aquele que me dispensou do Corinthians!
– Mas… você ainda tem mágoas dele? – indaguei.
– Não, não…
– Então, por que você só se refere a ele como “velho”?
– Bem… – pausa – Ele não gostava de ser chamado de Rato. E para não magoar minha memória, o chamo de velho. Mas que fique bem claro que isso é num “sentido carinhoso”.

Concordamos que o velho José Castelli, popularmente conhecido como Rato, foi um descobridor de talentos para o futebol e também um bom conselheiro para aqueles que não tinham aptidão para o futebol profissional. Hoje em dia, é comum jogadores darem as costas ao adversário quando esse ameaça chutar.

Observação final: No jogo acima mencionado, dois jogadores se profissionalizaram algum tempo depois, ambos pela Portuguesa; o meia armador Juarez, que depois jogou em diversos clubes da segunda divisão do futebol Paulista, e o outro era o centroavante Oswaldo, que jogou em times da primeira divisão do campeonato Paulista, foi campeão pelo Náutico e também campeão pelo Atlético Paranaense.

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