A mulher aflita

Com um semblante profundamente tenso, olhos arregalados, ela corria, segurando avidamente a sua bolsa pendurada no ombro. Roupas humildes, cabelo preso. Descia a rua levemente íngreme em mais um dia de desvario da Pauliceia. O sol ainda se preparava para sair da cama. Ainda bocejante, se espreguiçando, o sol pensava que ele, mais uma vez, teria que brilhar para os bons e os maus. O vento empurraria as nuvens para todos os lados para que ele pudesse mostrar o seu vigor amarelo com mais intensidade e beleza.<br><br>E a mulher corria para, certamente, pegar o ônibus já apinhado e com passageiros com cara de poucos amigos. Eu arrumava o carro para sair de viagem mais uma vez. Bem na época em que eu refletia sobre a dor da separação por eu ter saído de São Paulo para conseguir alguma paz, ter tempo e prazer para me dedicar a alguma arte, estudar mais ao invés de ficar parada no trânsito. <br><br>A mulher aflita corria decididamente e eu parei diante do fato. Timidamente, impotente, eu olhava com respeito para aquela pessoa em uma empatia intensa como jamais tivera. Rezei por ela. Como seria o seu nome? Sua idade? Sua história? Seus sonhos? Impossível saber. Deveria ter um pote de beleza guardado na alma, algum encanto muito bem escondido, pois é arriscado demais abrir o coração. Quantas das suas lágrimas marcaram o chão da cidade? <br><br>Em segundos, retomei toda a vida que tive. Do esforço em começar a trabalhar sem experiência e a arrogância do patrão por eu simplesmente não saber tomar decisões ou resolver problemas simples. As idas e vindas, tantas vezes infrutíferas, no tentar alguma vaga em algum lugar para alguma função. Os dias de chuva e o horário marcado. As longas caminhadas à noite de volta da universidade para evitar gastar mais um passe de ônibus. O jantar que não houve para eu não me atrasar para a aula de História Geral. O luto mal resolvido pelo falecimento do meu pai porque eu teria que dar aulas no dia seguinte pela manhã no outro lado da cidade. O lanche comido dentro do ônibus e a cara de escárnio do cobrador. Até parece que ele não conhecia a insânia da pressa! Eu ia entendendo, no meio daquela dureza da vida, que aquele que debocha, se diverte com a mazela alheia, tem a alma pequena… Então, não vale a pena falar do ser debochante.<br> <br>Eu ia revendo, através da mulher aflita, a vergonha que já havia passado por não poder oferecer ajuda em momentos delicados para pessoas próximas, de não poder receber bem em casa uma pessoa querida, de telefonar e falar rápido porque senão perderia o horário. Revi cenas, muitas cenas de um coração atormentado pelo relógio, sobretudo em épocas de exercício de magistério. Porque, aos olhos das coordenações, nada justifica uma falta de professor, um engano, um atraso. Normalmente se vê o professor como criminoso quando escorrega em situações banais da condição humana. Não, professor não pode ser humano aos olhos de quem quer que seja. <br><br>Eu fui revivendo meus passos através da mulher aflita. Sonhos despedaçados, vida flutuante em um mar de ansiedade… Mas sempre na certeza da chegada de um sol de primavera, permitindo o rebrotar da esperança, sem jamais perder a essência.<br><br><br>E-mail: [email protected]