A mudança de bairro

Antigamente os remédios eram todos feitos em farmácias de manipulação. Lembro-me do tratamento que minha mãe fazia quando tínhamos gripe muito forte.

A gripe era tratada com ventosas que consistiam em copos aquecidos e colocados pelo corpo, isso sem esquecer da obrigatoriedade de se tomar óleo de rícino nas escolas, uma espécie de vermífugo que as crianças ficavam desidratadas de tanto sentarem no "trono", ou como se operava as amídalas, sem anestesia, a sangue frio. Formávamos uma fila imensa e o famoso médico, Dr. Catapano, com o alicate em punho retirava as amídalas sem dó nem piedade. Como recompensa, ou para cicatrizar mais rápido ganhávamos um sorvete de uma sorveteria que ficava em frente ao consultório, acho que por isso não sou muito fã de sorvete.

A família de meu pai depois se mudou para Rua Sólon, 12, e depois no número 81, no bairro do Bom Retiro, um bairro às margens do rio Tietê, um rio tão limpo que as pessoas nadavam e praticavam o remo em suas águas, e não eram raros os alagamentos nas ruas em época de chuvas. Neste bairro vivi os sete anos de minha infância. No Bom Retiro havia também alguns outros malucos foragidos da guerra e que traziam, em suas bagagens, traumas violentos, tinha a mulher automóvel que só andava no meio da rua, o homem sirene que andava buzinando, o homem bomba que a cada dez minutos fazia um barulho simulando um alarme de ataque aéreo e se jogava no chão.

Sem contar as carpideiras, importadas do mediterrâneo, que com suas roupas pretas estavam presentes em todos os funerais com seus gritos e choros. Durante sete anos, com a economia que fizeram, meus pais conseguiram comprar um terreno e construir uma casa.

Mudamos em setembro de 1953 para o bairro do Sumaré, que naquele tempo chamava-se Campos das Escolásticas, Villa Romana e depois Sumarezinho. Pouca gente sabe, mas lá existia um sítio chamado Sítio do Bispo, um casarão onde os padres e freiras se reuniam.

Cercado de plantas por todos os lados e aí era propício para brincadeiras de pirata, esconde-esconde, caça ao tesouro, troca-troca. Isso rodeado de cobras e lagartos no verdadeiro sentido da palavra. As cenas dos lagartos chicoteando com seus rabos enormes as galinhas das vizinhas, para comê-las, é um registro interessante na minha mente.

A rua que era de terra servia como campo de futebol e de se cavar os buracos para o jogo de bola de gude. O papai havia comprado, de segunda mão, uma televisão que era a atração da rua e todos vizinhos vinham assisti-la. No verão, mamãe não deixava eles entrarem em casa por causa do cheiro dos pés, porque ela os obrigava a tirar os sapatos. E no inverno eles não tiravam os sapatos, mas sujavam o piso da sala de lama, por isso eles ficavam sempre do lado de fora, assistindo pela janela.

Querendo alçar voos mais altos, consegui transferência para o colégio Caetano de Campos, na Praça da República, centro de São Paulo. A Praça da República antigamente era chamada de curral e arena de touros, pois lá se realizavam as grandes touradas. Depois se modificou e surgiram novas praças, jardins. Lembro-me dos colegas e amigos, Paulo Rossi e sua irmã Perla, a namoradinha da escola, Pedro Abdo, Paulo de Tarso, Ubirajara Ohl, o historiador Jorge Colli, o artista global Otavio Augusto, o assistente de cineasta Silvio Renoldy, que me levou a uma festa beneficente no Clube Paulistano, um dos mais bem frequentados da época. Festa esta em prol de um engenho de Ilha Bela, de propriedade de sua namorada. Outro dia vi com emoção nos créditos de um filme nacional seu nome, fiquei louco para reencontrá-lo, mas São Paulo é assim, as pessoas se perdem na multidão. Um grande amigo da época, Marco Antonio Bertelli, que reencontrei em Brasília.

A volta dos bailes de formatura que eram realizados no salão do Aeroporto de Congonhas, do Clube Pinheiros, do Clube Homs, do Restaurante Fasano, do Clube Alepo eram sempre de madrugada e voltávamos de smoking ou Summer, que se confundia com os trajes dos garçons, consequentemente eram os que mais sobravam. Quando não se conseguia carona com algum pai de amigo ou amiga vínhamos a pé, pois os ônibus só funcionavam até meia noite, e a cidade toda dormia, inclusive os malfeitores, se é que existiam. Fazendo algazarra e surrupiando os litros de leite.

A necessidade de estar sempre nos melhores lugares, frequentar o "jet people", me levou a trabalhar no colégio Dante Alighieri, reduto máximo da burguesia paulistana, se não podia estar lá como aluno pelo menos estava por perto.

Lá cruzava e convivia com os Scarpa, os Matarazzo, Giobbi. Com o diploma do segundo grau e já com 20 anos, resolvi começar a procurar emprego fixo. Comecei a trabalhar na Interprint, uma empresa multinacional de formulários contínuos, que era considerada na época uma das maiores do Brasil.

Tentei o vestibular da Fundação Getulio Vargas, o máximo em curso de administração da época. No concurso das 100 vagas peguei o 101º lugar. E não entrei, na segunda vez peguei o 150º, e entrei menos ainda.

Participei da guerra Mackenzie x USP (ao lado da Faculdade de Filosofia, onde estudavam meus amigos) que aconteceu na Rua Maria Antonia, entre o pessoal da USP, de extrema esquerda, contra o pessoal do CCC, um grupo armado de direita. Vi com tristeza e medo o pessoal do CCC, Comando de Caça aos Comunistas, um movimento de extrema direita em cima do prédio da Faculdade de Economia, onde estudava, atirar no pessoal da USP, que revidava com armas também. Tudo muito triste, mas extremamente emocionante e excitante para um jovem que não tinha muita certeza do que estava fazendo ali.

Tornei-me assistente da Dra. Renata, e logo depois de formado fui dar minha primeira aula de macroeconomia, na FAAP. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Preparei a aula muito bem, mas não imaginei que uma aula de 50 minutos fosse tão longa. E assim, passado os primeiros vinte minutos, já havia encerrado a matéria. Marinheiro de primeira viagem não sabia mais o que falar e me deu um branco, e olhando para aquela turma de alunos com os rostos inquisitivos não sabia mais o que fazer.

Depois de 30 anos, como a casa estava alugada a um colégio e a diretora do mesmo tinha saído sem pagar, ficou abandonada por um ano, e como o aluguel da Alameda Lorena tinha ficado impraticável, ainda agora que estava desempregado, resolvemos restaurá-la e vir morar aqui, a qual chamamos de Villa Brunoro.

Qual não foi minha surpresa ao ser convidado pelo Senac, graças à indicação de minha sobrinha Sandra, para desenvolver um trabalho de pesquisa e criação envolvendo a casa brasileira em maquetes.

Junto com uma professora da USP, fizemos uma pesquisa sobre o mobiliário e costumes da vida brasileira.

Dividido em 11 maquetes, todo feito na escala de 1/10 reconstruí desde a oca indígena, primeira habitação brasileira, até os dias de hoje, com a apresentação de um home teather recheado de móveis de design brasileiro. Sempre acompanhado da comida típica da época.

Sucesso de público, até hoje, circula em exposições itinerantes por todo o Brasil. Inclusive tenho feito várias palestras a clubes e associações sobre este tema. Com a idade chegando, o mercado de trabalho se fecha na relação direta com que sua vida se abre para maiores dificuldades. Toda a experiência adquirida parece que não conta nada. País estranho esse que renega seus velhos senhores que tem uma vida, uma carreira, e no final, quando pensa que poderá viver tranquilamente, dependem de uma aposentadoria ínfima, que mal dá para comprar os remédios que começam a tomar lugar de outros gastos mundanos.

Com a experiência adquirida todos esses anos, colecionando, comprando e vendendo antiguidades, tenho feito avaliações de espólios importantes. Pelo fato de as pessoas sempre me perguntarem mostrando uma imagem que santo é este. Levei a ideia para várias empresas publicarem, quando da comemoração dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil, mas não consegui, ainda vou realizar, já fiz um artigo e já é um começo.

Sonhando com um país melhor para nossos filhos, netos. Pensando escrever um outro livro de contos, participar numa entrevista no programa do Jô, abrir uma loja de antiguidades, montar uma creche e realizar cada vez mais viagens a lugares. Tenho poucos bens materiais para deixar. Fora alguns objetos que as filhas já levaram, meu único e maior legado é o da experiência de uma vida, a compreensão, a resiliência, a justiça, a paciência, a perseverança, a humildade, a elegância, a altivez e a alegria de viver.

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