Desde que me conheço por gente, moramos grande parte de nossas vidas no sobrado da Rua Emilia Paulista, em São Domingos – Butantã, meus pais, eu e minha irmã Betinha que nascera três anos depois de mim. De topografia íngreme a nossa casa por estar em um nível acima das casas da rua de baixo proporcionava da janela do meu quarto uma visão deveras privilegiada, de lá podia contemplar toda a vizinhança.
No outono admirava o sol se pondo com tanto esplendor que não perdia o espetáculo, mas eram as manhãs de verão que me despertavam maior interesse. Do meu observatório dava para ver a menina do sobrado amarelo, na rua de baixo, brincando com seu cachorrinho no quintal.
Acredito que deveria ter a minha idade, não me recordo quando foi a primeira vez que a vi, sei que trago na memória todos os dias ensolarados em que pude vê-la no período em que lá morou. Até parece que crescemos juntos, porém nunca tivera a oportunidade de conhecer a garota, nem Betinha sabia me dizer quem era ela. Como disse, crescemos juntos, eu no meu quarto, ela lá, em seu quintal.
Enquanto criança, eu a contemplava apenas, digamos, como uma criança. Acontece que ela foi crescendo e as brincadeiras com o cachorro já não eram tão frequentes. Todavia, sua permanência no quintal tornara-se mais interessante para um adolescente com os hormônios à flor da pele.
Pela manhã, devido ao horário da aula já não era mais possível observá-la, mas voltando da escola almoçava correndo e subia para o meu quarto com a desculpa que ia estudar. Passava horas assistindo ao espetáculo, a minha amiga tomando sol trajando um minúsculo biquíni e eu me perdendo em meus devaneios à exaustão e as espinhas do rosto se alastrando. Até binóculos pedi a papai Noel que foi bonzinho comigo. Pude então me certificar que ela era mais linda do que pensava a minha vã imaginação. Ainda bem que quando chovia ou no inverno havia uma trégua.
Embora aquilo tudo se tornara rotina, eu nunca tive interesse em saber quem era a minha deusa inspiradora, talvez por timidez, vergonha ou sei lá o porquê.
Com a chegada do inverno já não era possível observar a menina no quintal e acabávamos nos entretendo com outras atividades rotineiras, e nem pensava mais naquela beldade.
A vida prosseguindo, tomei o meu rumo. Saí de casa e fui cursar faculdade em outro estado, me afastando assim do convívio direto com os familiares. Devido aos custos das passagens, esporadicamente visitava meus pais.
Betinha também foi embora, para o exterior, casou-se com um inglês e não quis voltar para o Brasil, enquanto meus pais continuaram residindo na mesma casa sozinhos. Conclui a universidade e constitui família permanecendo na região onde me formara. Meu pai morreu há alguns anos e minha mãe foi morar com uma irmã na cidade de Araraquara, onde foi sepultada na semana passada.
Hoje, após os falecimentos de meus pais, estou de volta para a casa onde passei parte da minha vida, para colocá-la à venda. Agora, após tantos anos estou novamente dentro deste quarto que um dia fora o meu mundo. Ele parecia ser bem maior do que realmente o é. Ainda tem as marcas do pôster do meu tricolor, campeão paulista de 1970, fixado durante muito tempo à parede, bem como sinais da velha escrivaninha no cantinho do aposento onde passara parte do tempo estudando. As paredes com suas cores agora desbotadas ainda insistem em revelar que um dia houvera vida no lugar.
Ouço o ruído do tempo ecoando por todo o ambiente, o velho e rouco radinho entoando canções enquanto tentava concentrar-me na tarefa da escola. Ainda, tenho a impressão que o cheiro da comida de mamãe permanece no ar. Abro a janela e ao invés de contemplar o sobrado amarelo o que vejo é uma torre de apartamentos obstruindo todo o horizonte outrora deslumbrante e que nada lembra o quintal onde brincava a menina da rua de baixo. O sol já não domina mais o espaço, é apenas uma superfície sombria, sem cor, sem vida.
Fecho os olhos, um vazio toma conta da minha alma. Trago a imagem de um passado de felicidade. A emoção se faz presente e lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não consigo me conter, coloco meio corpo para fora da janela e grito com todo o sentimento:
– “Onde está você, menina da rua de baixo?”