A garagem do passado

Contos & crônicas
"A garagem do passado"

Um casal de idosos, um cão, os pombos, as calçadas a caminho do "Terra Nova", os encadernados…

Quando vim morar na Liberdade, no centro de São Paulo, o bairro mais oriental do país, em 1990, aquele casal de idosos, residente num sobrado da Rua Ten. Otávio Gomes, ainda era razoavelmente viçoso. A consorte, uma vez por semana, a despeito do seu pequeno porte e do corpo visivelmente encurvado pelo "bico-de-papagaio", e fragilizado pelo peso dos anos, abria a "pesada" porta da garagem para lavá-la. Como o escoamento era feito para a calçada, é óbvio, acabava esguichando água com a mangueira até onde pudesse alcançar a pressão dos seus dedos.

Depois de secar a garagem – que já não guardava nenhum carro, a não ser quando recebia visitas -, molhava pães "adormecidos" e colocava a massa esbranquiçada na calçada, para os pombos, que, já sabiam a hora do banquete. (Havia quem torcesse o nariz para aquele "mela-mela", a ponto de, uma vez, quando por lá passava, ao ver uma porção generosa de amendoins sendo devorada, pensar: "Devem lhe ter passado um pito…)

A garagem, ao ser escancarada, deixava à mostra uma grande estante, de parede a parede, repleta de grossas encadernações de livros, a maioria na cor vermelho-carmim. E eu, vislumbrando-as, invejoso, sem poder lhes ver os títulos, me indagava: "Quais serão seus autores…?

Serão de direito, artes…? Haveria muita coisa rara, como "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, ilustrado por Gustave Doré, que adquiri de um amigo que ‘gosta de mexer com tranqueiras´, como dizia sua mulher?" Minhas perguntas jamais foram respondidas.

Há poucos anos, a bondosa senhora deixou o mundo dos vivos, deixando ao esposo e ao seu fiel escudeiro a responsabilidade de tomarem conta do patrimônio e de continuarem as tarefas costumeiras, como permanecer regando as folhas das trepadeiras – devidamente acomodadas sobre uma "ponte", feita pelos seus ramos, que atravessava, pelo alto, o passeio público, partindo de antes do portão da casa e se encontrando com a árvore que ficava a alguns centímetros do meio-fio – e, é claro, de prover (agora, com amendoins) os seus apadrinhados, embora os que torciam o nariz para a massa continuassem não gostando do novo alimento, porque "os pombos transmitem doenças".

Quantas vezes, ao sair do meu prédio, vi o ancião (nem sei o seu nome!) e seu velho cão, na rotineira caminhada rumo ao supermercado "Terra Nova" – que pertencera a japoneses (agora, de outros donos, com nome nada poético)…

O cão, a uns três metros adiante, procurava coisas no chão para comer e, vez por outra, cheirava "demarcações" de terrenos feitas por desconhecidos, que, imediatamente, eram sobrepostas, "definitivamente", por sua urina, em todo o território, enquanto o velho puxava para a sarjeta, com sua bengala, algumas sujeiras, que os transeuntes "esqueciam" nas calçadas.

A cena ainda se repete, invariavelmente, na semana (aquelas idas e vindas, imaginava, deviam ser, dentre outras coisas, para comprar os sagrados amendoins!).

Aquilo ainda me deixa um misto de alegria e tristeza ao imaginar que um dia eles não mais passarão… E os papéis jogados nas irregulares calçadas da Liberdade deverão permanecer, incólumes, assim como os papéis encadernados voltarão a ser, simplesmente, papéis, encadernando aquela minha curiosidade…

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Passando, ontem, defronte, vi a garagem, escancarada – molhada, como se estivesse chorando -, mostrando coisas "diferentes" – como se fossem dentes ausentes e careados! -, sem a poeira do tempo lido, sem traças, sem naftalina… Sem os livros!

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