A Ferrari

Antoine Gebran era um homem pertinaz em seu objetivo de rápida prosperidade e no que isso poderia proporcionar em luxo, riqueza, aparência e poder. Na juventude, nos anos sessenta, mal tinha emprego fixo, vivia de comissões, bicos e até de algumas apostas nos cavalos. Apesar dessas dificuldades, já possuía um Camaro, o carro chique da época.

Obstinado por tornar-se rico, acabou por prosperar rapidamente. De simples auxiliar de pessoal em uma multinacional farmacêutica, com mais algum dinheiro da futura herança dos pais, uns trocos da irmã caçula, os resultados de algumas pules vencedoras no Jockey Club e a indenização forçada do emprego, chegou a adquirir uma empresa de segurança patrimonial quase falida, a Septem – Serviços de Segurança Ltda.

Tornou-se o orgulho da família e de parte da colônia pela qual vivia cercado. Não era um homem bonito, tinha uma calvície precoce, apesar de todas as tentativas de entrelaçamento capilar, era levemente obeso e de baixa estatura. Compensava a falta de atributos físicos com discreto charme, elegância no trajar e uma subserviência dissimulada no comportamento.

Com o aumento dos assaltos a banco no período do regime militar, a necessidade de segurança aumentou, assim como sua fortuna e sua ascensão na trajetória de alpinista social.

Apesar de ser semi-analfabeto, com bastante dinheiro começou a adquirir algumas boas maneiras. Tornou-se sócio do Jockey Club, aprendeu a usar talheres corretamente, passou a frequentar festas da alta sociedade. Adquiriu um diploma falso de administração de empresas da Fundação Getúlio Vargas, tornando-se mais respeitado, não chegando, porém, a ser refinado. Interessou-se por artes, apesar de nunca ter conseguido distinguir um Picasso de um Miró.

Deixou de visitar seu cunhado que era dono de uma casa de esfias na Rua 25 de Março, hábito que tinha todos os sábados de manhã. Não almoça mais, exceto quando em companhia de algum político ou de pessoas influentes, pois ficava até altas horas jogando pôquer em sua mansão do Morumbi. O desjejum era na empresa, às três da tarde, com uma sopa rala, logo após sua chegada. Tornou-se inimigo ferrenho das contribuições sociais, apesar de seu empreendimento ser de mão-de-obra terceirizada.

Não mais cumpria suas obrigações de marido na alcova do lar, o que culminou, rapidamente, no desquite.

Na décima-terceira tentativa de aprender inglês, foi matricular-se na English School.

– Pois não?

– I want to learn English! – esnobou, de tão impressionado que ficara com a presença da atendente Iara.

Retornou a usar o português como idioma. Anotou algumas informações e deixou-lhe o cartão comercial.

– Assim, seria de bom alvitre passar a conhecê-la melhor, sem que isso seja levado como assédio – disse por fim, carregando nos erres e nos esses, imitando o chiado do carioca nativo.

O rosto de Iara ruborizou-se. Moça tímida e recatada sentiu-se cortejada pela segunda vez – a primeira fora quando eleita Miss Nova Cachoeirinha, bairro em que residia havia anos. Disfarçou o acanhamento negando-se ao convite, justificando com o fato de ter namorado.

Em outra tentativa de seduzi-la, Gebran foi à escola de inglês com sua Ferrari conversível, último tipo, vermelha, seu décimo segundo carro da frota de automóveis importados.

A moça não resistiu a esses encantos, antes vistos somente em filmes, que o novo rico lhe proporcionara. Apesar de dissimular o entusiasmo, para parecer difícil, aceitou o convite.

Sete meses depois, sem antes deixarem de passar por jantares, colares de pérola e presentes caríssimos, consumou-se a união. A cerimônia, de quinhentos talheres, foi regada com o melhor champanhe francês. A divulgação ficou a cargo de seu assessor de imprensa, AJ, cronista social e titular do programa Pague e Apareça, com Flash, uma espécie de referência na TV da nova burguesia paulistana.

Marcou a lua-de-mel para Punta del Este, nem tanto pelo aprazível lugar, mas pela possibilidade de visitar o cassino quando quisesse ou quando tivesse necessidade, pois o jogo em sua vida era agora uma obsessão. Necessitava da adrenalina e das endorfinas que isso lhe possibilitava. Tornara-se um viciado.

O milionário, apesar de novo amor, continuava sendo um empresário declaradamente contrário a todas as leis sociais, especialmente a previdência – e seu débito com a entidade crescia vertiginosamente. A voz corrente em sua empresa era que ele é que ditava a lei, acobertado por caríssimos advogados. Estava sempre repetindo, para se aliviar dos pecados cometidos, que já havia comido o pão que o diabo amassara.

Apesar de transmitir esse comportamento com sisuda figura, mantinha aparente entendimento com Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem conservava com manto de fina seda, cravejado de pedras semipreciosas, no lado direito de sua ampla sala de trabalho, cuja suntuosidade lhe acariciava o ego. Diariamente prendia uma rosa branca colhida nos jardins da empresa no manto da santa, pedindo sorte no jogo, criatividade nas falcatruas e impunidade na sonegação.

Antoine tinha receio do anonimato, e compensava essas privações com repentes intempestivos, como a manifestação de apoio a Bill Clinton, no episódio Monica Lewinsky, mandando publicar o reconhecimento da conduta no New York Times, reprisado em jornal da capital paulista. Era francamente favorável à sucção entre patrão e secretária.

Sua esposa, diante dessa atitude, simulava ciúme para acobertar suas escapadas vespertinas, que transformaram a pacata auxiliar da escola de inglês na belle de jour do Morumbi. Alisou seus cabelos para negar a origem, comprou celular e automóvel último tipo. Como pavoa, com ares soberbos, assumiu a superintendência na empresa, disputando mando com a vice-presidente, sua cunhada, aquela que contribuiu com uns trocos para a aquisição da empresa.

A rival não incomodava tanto, pois se distraía monitorando os funcionários através do vídeo do computador, pois em cada seção havia uma câmara escondida instalada, com o que ela vigiava o comportamento de todos. Conseguia também ouvir quaisquer chamadas telefônicas externas. Esse jogo mexia com sua libido, e, para aliviar-se, a cada três horas tinha suas rápidas idas ao banheiro, vício que a impedia de instalar câmaras também nesses aposentos.

Enfrentava o presidente, seu esposo, como num jogo de esgrima à distância, manifestando sua ira somente quando seu patrimônio particular fosse ameaçado, ou quando as benesses de seus parentes corriam o risco de ser cortadas, principalmente as de seu pai, que agora se transformara em corretor e intermediava compra de títulos da dívida pública, para a tentativa de resgatar o débito com o INSS avolumado em milhões de reais. Gastara dois milhões de reais na vã tentativa de se eleger presidente do Timão, clube popular no Brasil cujo símbolo era uma âncora, definindo que navegar é preciso. Se eleito fosse, prometera introduzir um par de luvas no distintivo.

No decorrer do casamento tiveram um casal de filhos, que herdaram os traços da mãe. Apesar de alienada, Iara cuidara do seguro do casamento com a dupla de príncipes, além de enriquecer seu patrimônio com desvios de dinheiro para sua conta particular.

Com as dívidas se avolumando, o cigarro, a angústia, a depressão e a dor-de-corno, numa das investidas vespertinas ao sexo para aliviar suas tensões enfartou – isquemia aguda provocada pela exuberância de uma "scort girl", sósia de Adriane Galisteu. A cada trinta dias Machado, seu fiel escudeiro, trazia, a seu mando, mulheres do Rio de Janeiro para acompanhá-lo em sua jornada sexual. Naquele dia exagerou, tanto na escultural dama quanto no desempenho. Morreu na cama redonda do motel, idêntica à de sua mansão do Morumbi, como sonhara.

Sua esposa sabia dessas escapadas, mas dissimulava o conhecimento como uma estratégia do jogo, da competição a qual disputava contra o marido. Manhas e artimanhas eram a regra do jogo, como o rato e a ratazana. Ele, escondendo o patrimônio e as escrituras, e ela, perseguindo funcionários da contabilidade, especificamente os do ativo fixo, para saber o que tinha, os valores, o que iria herdar na separação iminente. O que não esperava era esse tipo de separação, com um dos competidores retirando-se do jogo, da quadra, do campo, da mesa.

– O blazer de linho preto ficará melhor, mamãe – aconselhou a filha.

– Não, prefiro estar deselegante no enterro de seu pai. Na segunda-feira próxima, na leitura do testamento, eu o uso.

– O corpo de papai nem foi enterrado e já estão pensando em testamento – retrucou o garoto, enraivecido com a morte do pai.

Iara sentou-se defronte do caixão com os óculos italianos adquiridos em Miami nas últimas férias. Recebeu as condolências de todos: políticos, candidatos, empresários, fiscais, advogados, funcionários e até o crupiê do Atlantic City, velho conhecido do morto.

Na segunda-feira, no tabelionato, com quatro advogados, oficial do cartório e oito oficiais de justiça, iniciou-se o evento.

Iara manteve-se com sobriedade e calma, mas com ares de vitoriosa. Naquela guerra, no jogo, na disputa, na competição, era a vencedora. O defunto não poderia dar nenhum lance, estava gelado no caixão, na cova rasa.

– O iate, os 51% das ações da Septem, a casa de praia, o apartamento em Portugal, a casa em Miami, o BMW, a Mercedes-Benz 30 cilindradas…

O juiz descrevia o patrimônio lentamente, enquanto Iara escondia o nervosismo, de cabeça baixa e queixo apoiado na mão direita. Inquietou-se por não ouvir o relator mencionar a Ferrari, aquela que a conquistou e seduziu.

– Para cobrir o FGTS dos funcionários da empresa, que não foi depositado, e para saldar empréstimos bancários, será negociado o… – um frio na coluna vertebral, um solavanco da cadeira. Iara levantou-se: pronto, vão vender o automóvel importado, a Ferrari – … o apartamento de Lisboa, que já estava à venda.

Um alívio tomou conta de seu espírito. Não houvera blefe, na última jogada do marido.

Criou coragem e inquiriu o juiz:

– Meritíssimo, e a Ferrari esportiva, não consta do testamento?

– Sim, senhora Iara Gebran. Sinto informá-la de que, a pedido de seu esposo, a Ferrari deverá ser vendida, e o dinheiro auferido entregue à senhora Dinorath Marcondes do Amaral, sua concubina, se me perdoa a expressão.

Iara transformou-se. Enraivecida, fechou a cara, até chegar em casa e despencar no sofá da sala. O marido dera o último lance, um straight flush no jogo de pôquer, e ela, que se sentira ganhadora minutos antes, fora derrotada pelo marido. Entediada, retirou-se para o quarto.

No dia seguinte, alguém bateu à porta.

– Bom dia! A dona Iara está?

– Um minuto, vou verificar – respondeu a empregada.

– Pois não, o que deseja? – apresentou-se Iara Gebran, atendendo a porta.

– É sobre o anúncio da Ferrari. Como não tinha o que fazer, vim por curiosidade… o valor da venda é mesmo este do jornal? – perguntou, curioso, o visitante.

– Sim, o valor é quatro reais.

Imediatamente ligou para o advogado e para o oficial do cartório: vendera a Ferrari a um comprador de automóvel de rua, desses que ficam chamando no passeio, oferecendo-se para comprar seu veículo em troca de uma comissão das agências da "boca do automóvel".

Dera a última cartada no falecido marido, o royal straight flush que suplantou seu straight flush. Vencera o jogo, a batalha, o duelo das almas insanas. O valor da venda não havia sido definido no testamento.

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