A cirurgia

O sol batia firme na janela. Mariana começou a varrer a sala de jantar. Levantou as cadeiras uma a uma e pôs sobre uma grande mesa de carvalho no centro da sala. Olhou para o relógio alemão dependurado na parede da esquerda do cômodo. Faltava ainda um quarto para as dez da manhã e no Hospital Santa Catarina só os esperavam depois do meio-dia. Portanto, ainda tinha um tempo de sobra para terminar a faxina da casa. Todos os dias da semana Mariana pegava o bonde Avenida Angélica e subia em direção à Avenida Paulista, onde ia passear no Trianon. O primo Dagoberto também seguia para aquelas bandas e para tanto, quase sempre, iam juntos na mesma condução.

Naquele dia, porém, ela iria pedir para o Dagoberto se podia acompanhar a mana Isabel até o Hospital, porque tinha naquela tarde um compromisso inadiável no fórum do Largo João Mendes. Efetivamente, era uma delícia subir de bonde a Avenida Angélica e entrar na planura da Avenida Paulista. Naquele tempo reinava apenas o casario dos nobres barões do café, muito longe do atual centro financeiro do país. Quando observava aquelas casas, lembrou-se quando ela fez uma viagem de quase seis meses à Europa do pós-guerra, durante a qual pode observar com outros olhos as cidades semidestruídas da Europa pelos recentes combates da última guerra mundial. Por isso, a nossa Avenida Paulista era linda e formosa. Do bucólico e simples bonde apenas sobravam as considerações das condições socioeconômicas de seus passageiros que viajavam na cara dura a duzentos réis no reboque.

O quadro de nossa metrópole não ficaria completo sem essas considerações a respeito de nosso tradicional bonde do dia a dia. O ano era de 1942, antes do lançamento do novo dinheiro: o cruzeiro. Naquele dia de fevereiro o primo Dagoberto usava um chapéu panamá, uma bengalinha na mão direita para realçar o toque de elegância e de polidez tão em voga naquela época. Era o tipo perfeito do “quatrocentão” paulistano. De terno azul marinho, gravatinha de borboleta preta sobre uma camisa de seda branca de colarinho duro e alto acompanhado de um terno de risca de giz da famosa casimira inglesa recém-confeccionado pelo Metello, um alfaiate italiano da Rua Quintino Bocaiúva número 37, no centro da capital paulista. Antes de ir com a Isabel no Hospital Santa Catarina, resolveram passar na igreja de Santa Generosa, no Paraíso, para pedir uma benção toda especial para que a santa ajudasse na recuperação de seu estado de saúde.

A Isabel usava um vestido de organdi azul, de corte exagerado no decote sobressaindo os fartos seios pressionados em um sutiã meia-taça exibindo as tiras pretas das alças; os joelhos totalmente amostra em um vestido de saia curta, realçados pelos sapatinhos de camurça cinza combinando com a bolsa de couro cru de jacaré. No conjunto era uma bonita mulher, apesar dos seus bem vividos 40 anos de idade. O tempo cronológico não fazia muita diferença nas suas atitudes de pretensa garota de vinte anos. A pele era boa, não tinha muita celulite e as rugas da face estavam perfeitamente disfarçadas pelo retoque no tom da maquiagem recente. Diante da porta do hospital pararam. O Dagoberto carregava uma pequena maleta onde trazia as vestimentas da Isabel caso ela fosse internada naquele mesmo dia.

Antes, porém, tinha que passar pela tesouraria para efetuar o pagamento da caução da provável internação. O médico tinha diagnosticado dias antes uma apendicite e deveria operá-la no dia seguinte. Para tanto, estavam ambos ali, confabulando com a irmã Ludivina esperando pela confirmação da reserva do quarto particular. No corredor encontrou a Maria do Carmo uma definição sublime da boa samaritana. Estava ali parada, observando cuidadosamente o corredor do hospital. Na parede da entrada, havia um grande crucifixo de madeira com Jesus olhando tristemente para as suas chagas e consolando a todos aqueles que estavam em dificuldades de saúde. A Isabel cumprimentou a Maria do Carmo.

Deixaram o corredor e foram para o terraço que dava para a Avenida Paulista. Isabel estava entusiasmada com a preleção da moça que tinha sido também operada recentemente de apendicite e estava ali, em pé, se recuperando da cirurgia. – Foi o doutor Gaudêncio que operou você? – perguntou Isabel. – Sim! – Ele é muito competente – respondeu a outra, fazendo uma referência elogiosa ao médico. – E que te pareceu o ato cirúrgico? – perguntou Isabel curiosa. – Sem nenhum problema! Tudo correu conforme a normalidade. – E então, ele vai operá-la amanhã? – perguntou. – Acredito que sim! Estou na dependência das radiografias.

Junto com os pensamentos de Isabel vinham presságios e se a cirurgia fosse difícil podia dar-se o caso de ela morrer. Sim, pensava, já a anestesia por si só constituía em um perigo. Seria assim tão forte o seu coração? Enquanto estava envolta nestes pensamentos eis que o doutor Gaudêncio surgiu no corredor do hospital. Vinha acompanhado da freira, diretora do hospital. Dirigiram-se a uma pequena sala onde era o consultório do médico. Houve então um breve colóquio entre os dois.

– Está melhor não é verdade? – Sim confessou ela, sorrindo. Isabel olhou para ele quase com medo. – Então vamos ver esse apêndice que lhe causa tanto medo. – Vai operá-la amanhã? – perguntou a freira diretora e continuou – Devemos fazer a limpeza com o óleo canforado? – Por hoje não será preciso! – disse o médico – Disponha antes de tudo as radiografias completas, quero-as para amanhã de manhã, e virando-se para a freira diretora disse – A alimentação deve ser leve, mas regular. Olhando para Isabel, recomendou – Essa noite tem que repousar e amanhã veremos as radiografias – Não quero gastar mais de quinze minutos entre abrir, extirpar e fazer os pontos. Está bem assim? – À noite voltarei novamente disse – apertando a mão de Isabel. A freira saiu atrás dele para voltar logo em seguida – Com sua licença senhora por curiosidade minha e foi tirando o termômetro da caixinha e introduziu na axila de Isabel e começou a passear pelo aposento observando a disposição dos objetos sobre a cômoda e sobre a mesinha de cabeceira e afastou a cortina da janela que dava para a Avenida Paulista e depois voltou para o leito. – Quer dar-me? – Obrigada – Trinta e seis e meio. Perfeito! Coração normal, temperatura ideal. Isabel estava pronta para a operação.

Na manhã seguinte, após o ato cirúrgico, a consciência voltou lenta, opaca ainda, como se estivesse embriagada por laços que, depois de a terem mantido presa no fundo de um misterioso abismo, se refizessem em uma fluidez vaporosa permitindo voltar novamente ao mundo presente. Ao seu lado estava Mariana e o primo Dagoberto. Os olhos, no entanto permaneciam cerrados, mas o ouvido percebia sons, que a princípio eram confusos e que se tornavam pouco a pouco distintos. Uma voz ao seu lado a chamava: – Isabel! Era a voz de Mariana que ela estava ouvindo. Ao longe ouviu o ruído de um bonde que passava naquela hora pela Avenida Paulista. Acabara de ser operada. Agora o pior já tinha passado. Era apenas uma questão de tempo para que Isabel se refizesse do ato cirúrgico. Em breve estaria de volta a sua casa na Avenida Angélica.

E-mail: [email protected]