É próximo da hora do almoço quando chegamos, eu e minha mãe, ao centro. Na região da Praça Antonio Prado, lembra-se ela de que não há mais em casa o bendito creme de uréia manipulado pela Botica Ao Veado D'ouro, que, segundo ela, é o único capaz de reduzir com eficiência o desconforto na sola dos pés. Caminhamos pela Rua São Bento do Martinelli até a Praça do Patriarca: era aqui? Era! Tenho certeza, ali próximo à livraria Saraiva! Ou será que não?
Na dúvida vamos refazer o trajeto: livrarias, restaurantes, estabelecimentos de oferta de crédito, farmácias, lojas de roupas… E nada da minúscula entrada da antiga botica. Chegamos até a aventar o impossível: – será que o tradicional estabelecimento, após cento e cinquenta anos de existência, teria fechado no exato momento em que os pés de minha mãe aguardavam aflitos à aplicação do famoso creme?
Andamos até o Largo de São Bento, mesmo sabendo que para lá da Praça Antonio Prado não poderia ser… "Lembro-me até da entrada, pequena, logo abaixo de uma placa verde!?" Pensamos, por algum momento em perguntar a alguém. Mas soaria um tanto estranho perguntar a algum consumidor das mais modernas lojas do centro de São Paulo se ele sabia onde fica a Botica Ao Veado D'ouro. Certamente, algum transeunte mais apressado concluiria pela nossa insanidade.
Outro, tendente à arte do humor, sairia com essa: – “olha, a botica eu não sei, mas o Mappin encontra-se ali na Praça do Patriarca e a confeitaria Castelões na Antonio Prado". Alguém perguntaria se participamos recentemente de alguma experiência com o tempo, outro mais cético nos indicaria a clínica médica mais próxima. O fato é que achar o tal creme tinha se tornado uma verdadeira questão de honra e haveria locais em que a pergunta não seria tão inconveniente.
Exemplo? O vizinho bar Guanabara, no centro desde 1910. Ignorando a propaganda das coxinhas à la creme, pedimos uma feijoada completa, sem descuidar os olhos do garçom mais experiente do salão, ao qual dirigiríamos a pergunta. Assim comecei: – "O senhor, que trabalha aqui no centro, sabe onde fica a Botica Ao Veado D'ouro? Longe de verificar minha febre, o garçom afirmou pela existência do estabelecimento (isso eu já sabia, diga-se), mas não se recordava do endereço.
Pelo menos não achou tão estranho à pergunta vinda de alguém com pouco mais de vinte anos, pensei. De qualquer sorte, isto de nada adiantou. E ainda por cima, a feijoada se revelou uma péssima escolha para aquele sábado tropical. Já sem esperanças, folhava uns livros na Livraria da Editora Martins Fontes, no Edifício Lutétia, Praça do Patriarca. Fui ao caixa consultar o preço de um deles e, claro, aproveitei para perguntar ao atendente, cujas barbas grisalhas já teriam andado pela botica, certamente. Dito e feito.
Informou-me que o tradicional estabelecimento havia se mudado e, como numa ode ao século XXI, se prestou a procurar no Google o novo endereço. Claro! Este não julga ninguém, não acha nenhuma pergunta estranha, se limita a educadamente cogitar: "você quis dizer…". Pois bem, descobri que existem várias filias da antiga botica, a qual não é, de maneira alguma, tão desconhecida como havia pensado.
Existe até uma bem próxima de casa, no Cambuci. Ao menos segundo a poderosa ferramenta de busca, que tudo condensa na tela do computador mais próximo. No entanto, iremos lá conferir. A certeza que tenho é que, ainda que achemos o tal creme, ficando minha mãe satisfeita, o centro de São Paulo perdeu um de seus estabelecimentos mais tradicionais.
A pequena entrada da Rua São Bento ao final revelava uma grande sala, toda decorada com móveis antigos e escuros, sobre um dos quais repousava um grande veado dourado. Hoje, não achamos nem mais a entrada. E foi assim que pegamos, ao final da epopéia, o bonde de volta ao Ipiranga…
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