31 de dezembro, o limiar do novo ano

O último dia do ano, para mim, foi um dia muito especial desde a minha infância, 1949, quando tinha ainda 10 anos de idade. O motivo especial para ficar acordado vendo o ano mudar de unidade de milhar. No caso de 1949 para 1950, mudou a dezena de milhar. A corrida começava faltando vinte para meia noite e terminava à meia noite em ponto, saída e chegada na Rua Conceição (mais tarde Cásper Libero), em frente ao prédio de A Gazeta.

Quando os ponteiros estavam juntinhos, mostrando que era meia noite, alguns fogos eram soltos e eles vinham da cidade que, pelo fato de não haver tantas edificações, dos bairros mais próximos se ouvia o barulho dos fogos de artifício, saudando o novo ano. Mas o costume de fazer barulho vinha de outra maneira: a maioria dos postes da Light eram de ferro e muita gente batia com martelo ou barra de ferro nos postes, fazendo barulho por vários minutos; era legal e principalmente a garotada, se divertia muito.

Em 1958, aos 18 anos, eu já tinha direito de ficar na rua até mais tarde, de acordo com as regras da época. Sendo assim, às 20h já estava no Anhangabaú, dando os primeiros passos do último dia do ano pelo centro da cidade, que seria por muito tempo a passarela dos meus passos.

Girava todo aquele enorme quadrilátero do "centro novo", onde tinham vários cinemas (Do Marrocos até o República), muitas lanchonetes, restaurantes, da Salada Paulista, Kibelandia e Um Dois feijão com Arroz. Tinham também antros de perdição; era só seguir à direita pela Avenida Ipiranga e poucos quarteirões depois estava a boca do Lixo; era caminhar e "ser feliz".

As 23h30 eu já me programava para assistir a passagem dos corredores da São Silvestre. Meu local preferido era na esquina da Avenida São João com a Ipiranga; meu lugarzinho cativo era a parede do City Bank, que naquele ano de 1958, o primeiro corredor a passar foi o Argentino Osvaldo Suares, que nos dois anos seguintes, seria novamente ele passando em primeiro.

Nesse mesmo ano, entrei na congregação Mariana, uma instituição da igreja católica que tinha um belo time de futebol. Ao final do ano, todas as congregações tinham que enviar rapazes para ficar na Igreja de Santa Ifigênia, porque, segundo eles (da igreja), o sacrário não podia ficar a sós. E nossa instituição tinha o dia 31 de todos os meses como data fixa, e em dezembro estávamos lá, a partir das 22h, para tomar aquele café reforçado com leite, pão e biscoitos para aguentar a noite toda. Cada grupo tinha que ficar durante uma hora, e seria substituído por outro grupo. Meu horário era da uma às duas da madrugada. Na noite de dezembro, ficávamos na janela para ver o barulho do evento pelo menos.

Mas o ano que mais marcou a corrida de São Silvestre foi em 1964, quando um corredor indígena ia participar. Não me lembro o nome dele, mas sei que ele correu descalço; não me lembro de sua colocação, mas ele passou por lá, que era poucos metros antes da chegada. Enquanto não passava o indígena e já tinha passado o vencedor, Gaston Roelants, da Bélgica, um corredor alemão pisava no trilho do bonde e torcia o pé; se ele chegou até o final, não sei, mas, manquitolando, ele passou por nós, que batíamos palmas. Nesse dia, encontrei com uma amiga, que foi minha companheira do último dia daquele ano (1964), como todos gostavam daquele local para ver a corrida. A parede do City Bank era muito requisitada, e ela queria ir a outro lugar, porque não estava enxergando bem. Falei pra ela “Fica fria, vou fazer escadinha e você se agarra no ‘vitrô’ do banco”. Ela ficou brava e já foi dizendo:
– E você acha que vou ficar dependurada no vitrô?
– Que nada menina, é só para você ficar na altura do meu ombro, daí você senta nele.
E assim foi; além de assistir a corrida, meu ombro serviu de carona. Meu pescoço de suporte.

A corrida de São Silvestre era a referência do último dia do ano. Depois da corrida, eu ia de volta ao Anhangabaú, até embaixo do Viaduto do Chá, para ver se alguém havia se atirado de lá de cima, pois sempre tinha um corpo estirado ao chão. Até fotógrafo de jornal que dava preferência à notícia policial ficava de plantão. A imagem de corpos ali, sempre no sentido de quem à zona sul, foi vista algumas vezes.

Eram pessoas que não tinham tido um bom ano ou haviam sofrido uma decepção amorosa, ficava, ali jaz, esperando a polícia técnica que geralmente demorava. Não me lembro bem o ano, mas uma dessas imagens ficou gravada na minha memória: foi o de uma moça bonita, de vestido e sapato branco. E as indagações dos muitos curiosos em burbúrios: “O que será que passou pela cabeça dela?!”.

Essa caminhada anual durou até o ano de 1968, porque no ano seguinte, uma moça de nome Marieta falou pra mim: “Quer casar comigo?”. Pensei bem e raciocinei: “Não posso perder essa chance, pode ser a última”. Aceitei e com essa namorada estou desde 1966, até hoje. Haja paciência!

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