O ano de 1948 me marcou profundamente. Ficou gravado em minha memória para que eu nunca mais o esquecesse.
Vivíamos no bairro da Casa Verde, na rua principal, que na época tinha o nome de rua Inhaúma - posteriormente seu nome foi mudado para Rua Dr. Cezar Castiglione Jr., em uma homenagem muita justa a este grande médico, que também morava por lá.
Essa rua nesse tempo não era asfaltada, sendo toda calçada com paralelepípedos. Também, em seu leito carroçável, existiam os trilhos de bondes, que praticamente tomavam toda a rua, pois ela era estreita como é ainda hoje. Morávamos no número 196, onde hoje se situa uma agência do Bradesco. Seguindo sentido bairro, logo à direita, já aparecia a Rua Jaguaretê, e a partir daí a Rua Inhaúma já era toda de terra.
Garoto ainda, com a idade de 13 anos, e muito sonhador - diferente dos meninos de hoje que já nascem jogando vídeo game -, eu estava deslumbrado, pois a pouco mais de dois anos minha família morava na Rua Zilda. O local era na época muito deserto, os carros só passavam por ali cada dois ou três dias.
No ano de 1945, mudamos para a Rua Inhaúma. Ali tudo era diferente: muitos carros, ônibus, bondes, rua iluminada, publicidade nas lojas com luz de neon... Tudo novidade! Foi mais ou menos como morar nos confins do sertão e de repente mudar para a Avenida Paulista, já pensou?
Essa era a razão do meu deslumbramento. A partir dessa mudança tudo começou a melhorar em nossa rotina: condução a porta, padarias, empório (naquele tempo era esse o nome dos mini mercados), outras tantas facilidades que só nos encantavam. Enfim, quanta novidade!
Naquelas noites eu sentava na soleira do nosso portão e ficava horas admirando tudo. Como era bom, quanta felicidade!
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Aluno do Grupo Escolar José Carlos Dias, situado na Rua da Reliquia, onde é hoje o Hospital Casa Verde, passei maus bocados. Ainda se castigavam os alunos com palmatórias, réguas, e castigos. Professoras por quaisquer coisa castigavam os alunos. Quase desisti de estudar ali, tal o medo das professoras.
Então, aconselhado pelo nosso vizinho, fui transferido para o Grupo Escolar Mal. Deodoro da Fonseca, no Bom Retiro, situado na Rua dos Italianos.
Ainda estava no terceiro ano escolar, pois na escola anterior não consegui evoluir tanto, pela rejeição dos professores. No Marechal, ao contrário, encontrei pessoas maravilhosas como o diretor, Sr. Theodomiro Monteiro do Amaral, e minha professora do terceiro ano, Dona Cloris da Cunha. Duas pessoas abençoadas que transformaram um aluno arredio em estudante amante do aprender.
Nessa oportunidade aproveito para homenageá-los, mesmo tantos anos depois. Se me recordo bem me parece que o Sr. Theodomiro chegou a ser secretário da educação aqui em São Paulo, me corrijam se estiver enganado...
Pois bem, como disse antes estudava eu no Marechal Deodoro e, todas as manhãs, próximo das 7h, lá estava para tomar o bonde em direção a escola. O ponto final dos bondes na Casa Verde era na Praça do Centenário, que fica na parte alta do bairro. Para se chegar até lá, o bonde seguia em diante até a Rua Jaguaretê, virava a esquerda e depois de uns cem metros já estávamos na praça.
Lá em cima, terminavam os trilhos e então o motorneiro (o condutor do bonde) tirava o controle do equipamento e passava para a parte traseira do bonde. A parte traseira passava a ser a dianteira e o cobrador virava a alavanca, que ficava no teto do bonde, e o bonde voltava pelo mesmo caminho, sem precisar de manobras.
Muitas vezes, os passageiros, por excesso de lotação, subiam no bonde lá embaixo na Rua Inhauma, para viajar sentado. O ponto na parte de cima lotava totalmente, então o jeito era viajar pendurado no estribo do bonde.
Inúmeras vezes desci para rua Inhauma para viajar sentado. Numa dessas vezes, como o bonde já estava cheio na sua parte central, me acomodei na "cozinha" (era como chamávamos a cabine de comando do bonde). Chegando lá em cima a traseira virou dianteira, conforme meu relato anterior, e retornou com direção a cidade.
Motivado pelo excesso de passageiros e sendo uma ladeira muito acentuada os freios do bonde em que eu estava não funcionaram. Eram tipos de freio de varão, onde o motorneiro ao girar uma manivela aciona o sistema e o carro parava. O que não aconteceu naquela manhã! O bonde foi ganhando velocidade, descendo em sentido à igreja São João Evangelista, onde iria virar a direita para então começar realmente a descer a ladeira. Nessa altura, os passageiros notando a situação perigosa começaram a saltar do veiculo, já em velocidade elevada. Também havia muita gritaria!
Ao entrar a direita, na rua Jaguaretê, o veiculo já não conseguiria mais parar. E eu estava bem atrás do condutor do bonde, que só não pulou porque estava paralisado de terror. Me agachei atrás dele e fiquei no aguardo do pior. O bonde continuou em sua louca correria, e em seu interior não havia mais ninguém.
O pior estava por vir: na esquina com a Rua Inhaúma, onde o bonde deveria entrar à esquerda, bateria com toda violência na farmácia, que ficava bem em frente à rua Japuiba (hoje, Antônio Lopes Marin).
Esta farmácia já tinha, por diversas vezes, sofrido esse mesmo tipo de acidente. Mais uma vez iria acontecer essa tragédia e o pior, eu estava ali na frente com o motorneiro.
Dessa vez, o bonde não bateu na farmácia. Ele parou ao chocar suas rodas de aço com a sarjeta. Milagre! Essa foi a única vez que isso ocorreu, pois esse tipo de acidente já era corriqueiro, com vítimas fatais até!
Quando o veículo parou, eu desci, peguei minha pasta com livros e caderno, passei para outro bonde, que estava parado logo adiante, e fui para a escola. Lá pelas 11h, caiu a ficha e me senti tão mal que precisei ser medicado. Nesse dia, muitas pessoas ficaram feridas, mas todas sem nenhuma gravidade.
Para comprovar esse relato, abram na página do bairro da Casa Verde antiga. Lá está o acidente, tal como aconteceu comigo. Só que aquele deve ter sido mais antigo que o meu. O fato que narrei aconteceu no ano seguinte: 1949. Nesse acidente o bonde bateu na dita farmácia, que se não me engano pertencia ao Sr. Dirceu de Lima. Hoje ele tem uma praça com seu nome no mesmo bairro.
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