Há anos, já muito passados, certa ocasião quando minha mãe rememorava as lembranças de meus avós, com carinho, ela examinava o conteúdo de uma pequena caixa de lembranças dos tempos idos. Chamou-me a atenção um antigo relógio de bolso. A curiosidade levou-me a examiná-lo.
Era um orgulhoso Robert Roshel, em caixas de prata, um com desenhos filigranados, austeros, geométricos, com um botão saliente que pressionei aguçado pela curiosidade. Como por encanto, abriu-se uma tampa, pondo à mostra uma chapa acobreada onde faltavam o painel, os ponteiros e toda a parte frontal, apertei novamente o mesmo botão e como que por magia uma segunda tampa, esta na parte posterior do relógio, se abriu, pondo à mostra as entranhas de um metal opaco pelos cerca de 150 anos, dilapidado na ausência de algumas engrenagens dispersas que esperavam por suas pares; mais do que uma simples limpeza e regulagem ele necessitava de uma reconstituição.
Minha mãe me deu, pensei imediatamente em recuperá-lo. Procurei por um bom relojoeiro, sem esperança. Passei por um segundo relojoeiro, e mais e mais, por cerca de 20 anos vaguei entre São Paulo e Curitiba onde agora moro, sem expectativa.
Há poucos meses, certo domingo, perambulando pela feira de arte e antiguidades do Masp, parei em uma banca para admirar alguns relógios antigos. Aproximou-se de mim o proprietário daquelas máquinas fenomenais. Era o Sr. Jan Drabek, que fiquei sabendo ser um relojoeiro por tradição de gerações de família e que me perguntou se eu as admirava. De pronto respondi que era fascinado por elas e que possuía um relógio muito especial que não funcionava e que, apesar da longa procura de anos, não tinha encontrado um profissional que ousasse tentar consertá-lo.
Com um jeito simples, ele se propôs a examinar o relógio. E fez-se a luz. Animei-me todo com a possibilidade e combinei que em um par de semanas voltaria a São Paulo com o relógio.
Acicatado, voltei após duas semanas. Feira do Masp. O Sr. Jan examinou rapidamente o relógio e disse em seu jeito singelo:
- Há esperança. Faltam inúmeras peças, a bem da verdade cerca de 60% do relógio não existe, e por serem peças únicas, de escassa reposição, talvez eu tenha ou possa fabricar o necessário.
Passadas algumas semanas e em um agradável telefonema eis que o Sr. Jan me informou que o relógio poderia ser concertado, e combinamos um novo encontro na feirinha do Masp.
Lá, um sorridente Sr. Jan entregou-me o relógio que lindamente “tic-tacteava”. Com um painel restaurado, ponteiros dignos à época a caixa brilhando, restaurada ao antigo esplendor.
Retornei para Curitiba. Chegando em casa, o relógio sem motivo aparente parou. Voltei a São Paulo algumas semanas após e o Sr. Jan o fez funcionar novamente, além de me ensinar como tirar a máquina da letargia dos anos sem trabalhar.
Retornei a Curitiba, ele parou novamente, sem motivo. Nova vinda a São Paulo e o Sr. Jan me surpreendeu ao perguntar, tentando sentir minha reação – qual era o perfil de meu avô. Eu respondi que pouco me recordava dele, mas tinha a nítida certeza que ele era autoritário. O Sr. Jan sorriu e me disse:
- Já consertei mais de centenas, milhares de relógios, e é comum eles se comportarem como se algo mítico de seus proprietários os tenha impregnado, um certo comportamento que só os holistas tentam explicar, é preciso um tratamento muito respeitoso e carinhoso com estas máquinas.
Deixei novamente o relógio com o Sr. Jan e após um novo par de semanas voltei para apanhá-lo. Pois estava funcionando perfeitamente. Levei-o para Curitiba e entreguei finalmente para meu filho, o primeiro bisneto do meu avô.
Passaram-se alguns dias e perguntei curioso para meu filho como estava o relógio. Ele me respondeu que todas as noites, antes de iniciar a leitura diária, já que é um ávido leitor, regularmente dava corda no relógio. E o deixava na mesa de cabeceira da cama. Mas não sabia explicar que, após dar a corda do dia o relógio, parara e ele não havia conseguido trazê-lo à vida por nada. No dia posterior ele estava lendo um livro, quando ouviu o reinicio do “tic-tac” do relógio que voltara a funcionar sozinho, e mais ainda: quando resolveu acertar os ponteiros da hora não teve necessidade de fazê-lo, pois ele estava indicando a hora certa, tendo ficado parado por exatas 24 horas.
Talvez a sincronicidade de Jung possa explicar o fato, mas o Sr. Jan deve ter razão ao dizer que essa surpreendente maquininha tenha vontade própria, embora seja difícil de se crer.
Esta nova demonstração de seu caráter intempestivo devolveu a misteriosa máquina às mãos do Sr. Jan e, finalmente, após, após inúmeros e longos interlóquios que duraram um par de semanas eis que o orgulhoso “Robert Roshel” aceitou a voltar a funcionar de uma maneira maravilhosa.
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