Estávamos em 1944. O barbeiro Ruggero Di Napoli, da Rua Venâncio Aires, número 197, entre um corte de cabelo e outro, costumava folhear e ler o jornal “O Fanfulla”, edição especial sobre o andamento da guerra pela conquista da cidade de Trípoli. O jornal trazia no alto da primeira página, estampado com destaque em negrito, uma reportagem sobre o conflito de Trípoli. Dizia o jornal em letras garrafais na sua manchete principal: “Trípoli Essere Italiani” e continuava o texto em letras menores: “durante um raid Dell esercito italiano, i nostri soldati coraggiosi, hanno conquistato uno spazio nella battaglia di Trípoli. Quei gioni memorabili, i nostri combattenti, sotto il comando del generale Lúcio Spadone, aveva fatto diversi ostaggi nelle collin della città”.
A cidade de Trípoli estava restrita dentro da zona de influência italiana, e a pretexto de proteger os seus cidadãos italianos que viviam em Trípoli o governo da Itália tinha declarado guerra ao Império Otomano. No entanto, o Domingos Carabinieri, que era proprietário de dois sobrados na Rua Turiassu, de números 123 e 134, não estava nenhum pouco interessado naquele conflito de guerra. Quando lhe dava na telha costumava arregimentar alguns patrícios, especialmente o Antò (Antonio) da alfaiataria Bonanno, na esquina da Avenida Pompéia com a Rua Venâncio Aires, e costumava chamá-los para jogar sinuca, no saguão do boteco do Metello, na esquina da Rua Caraíbas com a Rua Turiassu.
O Gino, vulgo pé de anjo porque calçava o sapato número 50, era dono da quitanda “Bela Nápoles”; casado com a Henriqueta, amiga intima da Josefina, que também morava no cortiço do Francesco Petrilli, um italiano sovina, avarento e mesquinho, dono de todo o quarteirão entre as Ruas Caraíbas e Diana e da única padaria existente até então no bairro: “O Doce Pão Vitália”, era outro que também fazia gosto jogar uma partida de snooker com os conterrâneos da velha península italiana, especialmente os calabreses de Torre de Ruggiero e de Pizzo di Calábria, no extremo sul da Itália.
No frigir dos acontecimentos, o barbeiro Ruggero, imbuído da mais nobre cidadania italiana, resolveu enfeitar a barbearia com bandeirinhas tricolores: brancas, verdes e vermelhas, cores da bandeira italiana em volta do espelho principal, e colocou à esquerda, na parede divisória, o retrato da família real italiana representada em primeiro plano pelo rei Humberto II ao lado de outra fotografia do Dulce Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista de quem ele era fã de carteirinha. Aquilo era um gesto de exibicionismo literal, informal e jacobino baseado nas pregações do fascismo pelo Benito Mussolini.
Mas não fiquemos detidos nesses personagens jocosos e espirituosos. O bairro de Vila Pompéia tinha também o seu lado romântico, reduto de moças bonitas, especialmente por ocasião das festas juninas promovidas pela paróquia de Nossa Senhora do Rosário da Pompéia, onde havia ali uma explosão de feminilidade. A padronização da beleza das moças de Vila Pompéia não era correta, existiam também algumas moças que eram felizes, mesmo não tendo corpo e rosto perfeitos. Era o caso da Aída, irmã caçula do Zucollo, filha do sapateiro Nicola Pellezzano Zucollo, proprietário da sapataria “A Vaqueta de Couro”, na Rua Tucuna, número 316. Ela estava fadada para escolher para noivo um parceiro da própria coletividade italiana. O felizardo escolhido era o Anacleto Pizzollo, filho de um juiz de paz da comarca de Taubaté e que morava na Rua Japurá, no bairro do Bixiga, no centro da cidade; e se deslocava todos os dias úteis da semana para aquela cidade do interior do Estado de São Paulo, onde exercia a sua função profissional como conciliador das cerimônias de casamentos.
Durante os domingos, na parte da tarde, a coletividade italiana que era a essência da sociedade paulistana de então se aglomerava diante das bilheterias do Palestra Itália, para comprar ingresso para o jogo dos finais de semana. Naquele domingo o campo estava adornado e enfeitado com bandeiras do Palestra Itália e do Esporte Clube Corinthians Paulista. Havia no ar um delírio futebolístico no Parque Antártica. Assim que o jogo começou, a Henriqueta cravava as unhas no braço da Josefina, gritando no meio das arquibancadas de madeira no setor de entrada da Avenida Francisco Matarazzo, de olhos ávidos e nervos elétricos nos jogadores do Palestra Itália. Do outro lado do estádio o “Hurra! Hurra! Hurra!”, gritava a torcida do Corinthians ao som do batuque do surdo cadenciado e das caixas de repiques de tamborins.
O Claudio de Pinho driblou a zaga pela direita e centrou a bola. Ela fez uma pequena curva e caiu como uma luva na cabeça do Baltazar, que meteu o balão de capotão nos fundos das redes do Palestra Itália. A Henriqueta ficou abestalhada. Entusiasmos rugiram como trovão nos quatro cantos do estádio. Alguns pulavam nas arquibancadas, outros dançavam e gritavam com as mãos batendo nas bocas.
“Gol”!
A Josefina fechou os olhos de ódio, tapou os ouvidos para não escutar mais aqueles gritos de gol.
- Juiz ladrão, indecente, desonesto, imoral, sem pudor, ridículo! O Baltazar estava em impedimento – gritava a torcida do Palestra Itália, do outro lado das arquibancadas.
- Fecha essa latrina, seus burros de uma figa! Vociferava a torcida do Corinthians
A Henriqueta ergueu-se na ponta dos pés. Estendeu o braço fino para o alto da cabeça e gritava em desespero para o Jair da Rosa Pinto: chuta... Chuta... Maledeto canne. A assistência do Parque São Jorge gelou. A bola partiu como um bólido e entrou no canto esquerdo, sem defesa para o goleiro do Corinthians.
“Gol”! Do Palestra Itália. A assistência berrou a todo pulmão “Ipe-Ipe-Ipe... Palestra, Palestra, Palestra é o nosso time... Ô-ô-ô-ô!... Ô-ô-ô-ô!”. Um aeroplano de duas asas passou rente ao topo da arquibancada da Rua Turiassu. Palmas saudavam os jogadores de cabelos molhados de suor.
Apito do arbitro. Fim de jogo. 1x1, um belo empate. O campo logo ficou vazio. A multidão começou a sair pelos lados da Avenida Francisco Matarazzo. Eram os torcedores do Palestra Itália; a outra torcida do Corinthians saiu pela Rua Turiassu para evitar confrontos.
Na Avenida Francisco Matarazzo, os bondes estavam apinhados de torcedores, berrando, cantando, assoviando. A Henriqueta se fechou na sua indignação. O Palestra merecia a vitória. Enfim, eram coisas do futebol. Breve estaria conformada, porque tinha marcado um encontro, logo mais à noite, com o Gervásio, filho da costureira da Rua Padre Chico. Foram assistir ao lançamento do filme “Casa Blanca", no Cine Pompéia, no alto do morro da Rua Cotoxó.
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